O fim do Inverno

Samuel empurrou a janela para fora, apoiando os cotovelos no beiral. A claridade entrou no quarto de uma vez só. Samuel, por alguns instantes, não conseguia enxergar o lado de fora do quarto. O mundo lá fora. Acostumou os olhos. Os joelhos ainda doíam. Difícil ficar em pé. Reumatismo. No frio sempre piorava. Cada ano pior, alguns anos já. Enxergava, agora. Dia claro. Um restinho de neblina no ar. Fim de inverno em Curitiba. Arriscou olhar para o ipê plantado no jardim. Olhou aos poucos, com medo da resposta que a árvore daria. Sorriu. Galhos floridos, amarelos, brilhantes. Cobertos de sol. O inverno estava acabando. Não gearia mais. Já nem sentia mais tanta dor assim. Mais um inverno que atravessara.

A moça que ajudava na casa ainda não tinha chegado. Olhou, agora com os óculos que estavam na cabeceira, o espetáculo da árvore florida. A moça sempre atrasava. Marlene, o nome dela. O filho que pagava o salário da moça. O filho queria alguém junto com o pai. Ele mesmo, nunca vinha. Se vinha, ficava dez, quinze minutos. Marlene, às vezes, também não vinha. Samuel entendia quando Marlene não vinha. Não dizia nada. Entendia e ficava quieto. Às vezes era a filha doente. A creche fechada. O marido que incomodava. Samuel entendia, concordava com a cabeça. Já tinha passado por muita coisa. Já tinha visto o quanto a vida podia ser dor e tristeza.

Mingo deitado na florada do ipê. Ô, Mingo velho! Perdigueiro, preto e branco. Quase doze anos agora. O melhor amigo, a companhia de Samuel. O sol batia nas flores caídas no chão. Mingo aproveitava o sol. Samuel assobiou, chamou o cachorro. O perdigueiro levantou a cabeça, olhou o dono. Cachorros sorriem de vez em quando. Se a gente precisa, precisa muito, eles sorriem. O sorriso de Mingo alegrou Samuel. O cachorro espreguiçou, veio trotando devagar. Em direção à janela ainda aberta. Joana é quem tinha acostumado Mingo assim. Joana partiu sem avisar. Um dia não acordou mais. Joana deixou Samuel e Mingo sozinhos. E sozinhos, assim, os dois velhinhos ficaram. No meio do caminho entre o ipê e a janela, Mingo parou. Olhou Samuel, dizendo: Espere! Barulho no Jardim! Mingo sai correndo, latindo, em direção ao portão. Seria a Marlene? Mingo nunca latia quando Marlene chegava. Mingo latia agora. Não latia brabo, por que brabo não era. Latia contando para Samuel: No portão, alguém.

A campainha da casa quebrada. Ninguém vinha visitar Samuel mesmo. O filho, quase nunca. Vida corrida, ele dizia. Netos não tinha. Barulho de palmas. Alguém batendo umas palminhas. Palmas de criança. Palminhas e um grito: Tiiiio! Joga a Bola! Tiiiio! Mingo latia. Latia alegre com a novidade. Um bando de pessoinhas na frente da casa velha de madeira. Um mini time inteiro de futebol.

Samuel localizou a bola, num canto, no jardim. Uma das crianças já agradava Mingo, esticando o bracinho pelo portão. Mingo todo derretido. As crianças esperando. Uns oito piás. Nove, dez anos. Camisas de todos os clubes. Todos esperando, viram Samuel. Ao mesmo tempo falaram, ansiosos: Tio, a gente tava jogando bola, caiu a bola lá, alí, no canto, alí. Tá vendo? Joga a bola pra gente? Fazia tempo que ninguém pedia nada para Samuel. Muito tempo. Achavam que ele nada podia fazer. Aquela criançada, aquele barulho, intimidou Samuel. Samuel fez uma cara séria, olhou os jogadores todos, todos esperando a bola. O coração de Samuel ainda cheio de inverno. Os jogadorezinhos olharam para baixo. Samuel pensou, que barulheira, onde já se viu! Falta de respeito.

A essa hora da manhã. Mingo sentiu a apreensão das crianças. Sentiu a dúvida no coração do amigo. O medo. A incerteza. Sentiu aquelas coisas que as gentes não sentem. Mingo, que era bicho, sentia. Entendia mais. Entendia sem maldade. Mingo afastou-se do portão. Afastou-se dos agrados do piazinho com a camisa da seleção. Veio caminhando na direção de Samuel. Olhou Samuel com os olhos amarelos. Mingo e Samuel conversavam. Na maioria das vezes, Samuel falava para Mingo. Contava da sua vida de antes. Falava de Joana. Falava da Europa que tinham deixado para trás. Do esforço que tiveram para educar o filho.

De como se sentia sozinho. Mingo falava só às vezes. Só quando precisava. Quando precisava ajudar o amigo. Quando precisava dizer, agüente firme, força! Que é isso companheiro, vai desistir? Vamos em frente! Mingo falava olhando só. Samuel entendia. Samuel entendeu. Caminhou em direção à bola. Caminhou devagarzinho. Mingo, um pouco mais rápido, encorajando. Samuel curvou o corpo lentamente, alcançou a bola. Pegou a bola com as duas mãos. Foi caminhando até o portão, a cara ainda séria. Os meninos apreensivos do outro lado. Será que eles não teriam a bola de volta? Olhou para os meninos, olhou um a um. Perguntou, sotaque carregado: Oscês moram aonde? Aqui na frente, Tio, no prédio. A gente tava jogando, o Cabelo, pereba, chutou a bola por cima! Outra olhada para todos os meninos. Uma olhada em Mingo.

Mingo disse o que fazer. Samuel pegou a bola e jogou por cima do portão. Devolveu. Alegria geral, Eba! Viva o Tio! Viva! Samuel sorriu, ficou alegre, feliz. O jogo recomeçou. Parou de repente. O menino que agradava Mingo cochichou qualquer coisa para outro amigo. Todos concordaram. O menino amigo de Mingo, com a bola debaixo do braço, voltou até o portão: Tio, cê quer ser o juiz? Quê apita o jogo? Mingo olhou pra Samuel: Aceite! Samuel sorriu e aceitou. Arrastou uma cadeira para frente do portão.

A cadeira continua lá até hoje. Samuel, bem velhinho, apitando o jogo da turma da Rua. Todos gostam de Samuel, que acabou virando o Avô geral do time de estudantes de direito, medicina, arquitetura. O time, que disputa o Campeonato de Amadores, virou Vô Samuel Futebol Clube. Camisa amarela, cor do ipê mágico que nunca mais deixou de florir. No brasão, um cão estilizado. Uma homenagem ao Mingo, que continua latindo, lá dos Céus dos cachorros, para toda bola chutada para fora.

Aristides Athayde

é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce

aristides@aristidesathayde.com.br 

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