No tempo em que Dalton Trevisan também era Gerson

Para variar, quebrando a monotonia, eu gostaria de começar esta crônica de forma anacrônica. Pensando melhor, sinto-me forçado a começá-la exatamente por onde se começa qualquer tarefa ou assunto: pelo princípio. Nem antes, nem depois. Assim farei.

Numa das minhas “expedições” recentes, por assim dizer “arqueológicas”, aos “sebos” desta nossa capital sorridente (mas também ecológica, é claro), acabei por descobrir o que se me afigura uma raridade bibliográfica. Uma preciosidade inconteste: um livro editado em 1945, numa edição limitadíssima de poucas dezenas de exemplares. Quantos existirão hoje na praça? Pouquíssimos, certamente. E eu chego a suspeitar até que o meu exemplar talvez seja único. Jânio perguntaria: sê-lo-á? E eu respondo incontinenti: “chi lo sa?”.

Seja-me permitido descrever a geografia livresca do dito cujo: trata-se de um volume magro, meio roído pelos ratos e pelas traças, da cor amarelada da icterícia, e que, no seu conjunto orgânico de celulose e tinta seca, parece calçar sandálias leves de franciscana modéstia.

Título do livro, ou melhor, do opúsculo? Simplesmente, enxutamente, Contos (edição da Gerpa, 1945. Cadernos da Bolsa dos Inéditos-I). Essa “bolsa dos inéditos” foi bem “bolada”. E é de morrer (de rir). Será que ela flutuava, para cima e para baixo, como as bolsas de valores contemporâneas?

Autores do livro precioso? Um quarteto. Não de Alexandria, como o de Lawrence Durrell. Mas curitibano. Aliás, curitibaníssimo. Os nomes dos quatro estreantes? Ei-los: Hercílio C. Maes, Glênio Sá Brito, sra. Navarro Swain (Enói Renée) e – cáspite! – Dalton Gerson Trevisan. Assim mesmo, com todas as letras. Com o estranho e curioso Gerson no meio. Como não poderia deixar de ser, a “descoberta” imprevista gerou pelo menos três surpresas. A primeira? A de descobrir uma espécie de auto-retrato do artista quando jovem, ou seja, de Dalton Trevisan adolescente. Ao lado de três outros escribas principiantes que, naquele momento histórico específico, eram mais ou menos da mesma altura estética. Ou seja, todos baixinhos…

Segunda surpresa? Constatar que Dalton também já foi Gerson, “in ilo tempore” – no tempo dos afonsinhos. Pretendendo talvez, como o grande craque que foi “canhotinha de ouro”, levar vantagem em tudo. Sejam notícias das páginas policiais de diários e hebdomadários, bulas de remédio ou mesmo propagandas das balas Zequinha – inconfundíveis.

Até aqui, convenhamos, nada demais. Afinal, todos, escritores ou não, foram jovens um dia. Os grandes como os pequenos, os gigantes como os nanicos. A grande tragédia é que todos acabam por envelhecer, inexoravelmente. A velhice é praga, ou epidemia, planetária. Quando descobrirão a vacina milagrosa ou o genérico salvador, capazes de evitar as suas conseqüências quase sempre letais?

Por outro lado, quantos escritores não começaram as suas carreiras vitoriosas com nomes que depois abandonaram, alteraram, substituíram ou simplificaram? Basta lembrar apenas um caso, a título de exemplificação até certo ponto paradigmática: o imenso Rui Barbosa começou por assinar-se como Rui Barbosa de Oliveira (seu nome completo). E quem nos diz que, se o machado translúcido não tivesse cortado rente a oliveira, Rui teria se tornado, como efetivamente se tornou, a admirável, esplêndida “Águia de Haia”? É bom não esquecer os saborosos comentários de Sterne, repetidos por Balzac, a propósito da inelutável influência dos nomes no destino dos seus portadores. “Nomen est omen.” Este nome é um presságio, dizia Plauto numa das suas peças. Não dizia mal.

Mas o que verdadeiramente surpreende no livro Contos – e essa é a terceira surpresa – é a “estória” de autoria de Dalton Gerson Trevisan, intitulada, bem daltonicamente, como “Conto tirado duma notícia de jornal”.

É um texto ultra-romântico, com pinceladas realistas no seu desfecho, que de modo algum parece ter sido escrita pelo contista maior que o mundo inteiro hoje respeita e admira, mas por um homônimo seu.

Se, como ensina Buffon, “le style c’est l’homme”, o homem que escreveu o conto retromencionado é “outro” que não o mestre das Novelas nada exemplares. O que nos faz admitir que, pessoanamente, Gerson é “ele mesmo”, Dalton Trevisan, é a temática/problemática e, mais do que isso, o “clima”, a “atmosfera” que envolve, como auréola de luminária da rua dentro do nevoeiro noturno, a “estória” melodramática, tão pouco convincente como algumas óperas. Eu disse – algumas.

Enfim, vamos ao conto daltônico (embora o autor enxergue muito bem). Para demonstrar a minha tese, citarei alguns parágrafos iniciais e finais do aludido conto: “Diante do espelho, o bem vestido e alegre Raimundo corrigia o nó da gravata vermelha: achava mais belo que o cântico dos cânticos um chope gelado numa tarde de calor e a sua vida era pois um mar de rosas. Tinha 26 anos e ganhava Cr$ 2,50 à hora, no emprego; nascido de pais pobres, foi um menino triste, invejoso dos filhos de papais ricos que comiam pêras da Califórnia e chocolate e não davam para ele. Nunca ganhou no Natal os presentes que mais queria, nunca teve uma bicicleta, nunca tinha beijado uma mulher a não ser da vida.

Mas Raimundo não sabia disso e assim era feliz, quando se via no espelho, bonitão em sua gravata vermelha de bolinhas”.

Agora, os parágrafos finais: ” – Está bem! – disse ele, rangendo os dentes. – V. não é minha, mas não é de mais ninguém…

Num ápice sacou o revólver do bolso e atirou cinco vezes, enquanto os passantes corriam pelos lados gritando de medo: Maria da Lua atônita e linda como uma flor num vaso se despetalou com um suspiro, que nem uma parede que desaba para o chão.

Raimundo encostou o cano fumegante no ouvido direito e por um segundo sentiu que tinha pena de morrer, se ele pudesse viver mais um dia, gozar o sol, olhar as estrelas, beber um chope… Súbito, o moço tombou de borco sobre a amada dormindo, que parecia um lírio do vale se abrindo ao clarão da lua…

Ela era linda e ele gostava dela, mas ele não era lindo e ela não gostava dele”. Finis.

Esse conto escrito aos dezessete anos, em estilo incipiente e precário, ainda exibindo fraldas e cueiros (metafóricos, evidentemente), me faz lembrar das Prosas bárbaras do Eça, escritas aos vinte. Nos dois casos, pálidas, palidíssimas amostras – ou nem isso – das realizações futuras dos dois mestres.

Trevisan, aí, começava a afiar a pena rombuda, fazendo os primeiros atos litúrgicos da escrita, como o ginasta que exercita os músculos antes da competição. No caso, os “músculos do cérebro”, como diria Einstein. Com dificuldade natural, o “vampirinho” de então aprendia a abotoar a casaca da prosa literária. Esse fenômeno, aliás, aconteceu com a grande maioria dos grandes artistas, em todas as províncias criacionais. Raros os que, como Oscar Wilde, Thomas Mann ou Malraux, começaram, por assim dizer, adultos. Eles foram autênticos “delfins dos deuses”.

Mas, seja como for, eu tenho a impressão – ia dizer a certeza – de que o Dalton contemporâneo deve ter muitas saudades daquele tempo bom em que ele também era Gerson – “avant la lettre”. Ou seja: antes que o “canhotinha de ouro” fosse nascido. Sim, bom tempo – “in ilo tempore…”.

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