Em um dos DVDs de sua alentada cinebiografia (de doze episódios de uma hora e meia), Chico Buarque trata do assunto romance – é este, inclusive, o nome do episódio. Ao final do documentário, o cantor e compositor, talvez o mais importante da história da música brasileira, trata das canções feitas para embalar histórias de amor. Ele chega a se emocionar quando recorda que algumas pessoas lhe contaram que têm em suas obras a “trilha sonora’ de seus relacionamentos. E cita algumas das canções que mais gosta – como Every Time We Say Goodbye, Lança Perfume e Minha Namorada.

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O que elas têm em comum? São verdadeiras “cantadas” com melodia, declarações de amor desbragado que só tem um objetivo, o de convencer a pessoa amada que não há nenhuma outra coisa a fazer senão se entregar. No DVD, Chico chega a usar um termo espanhol, que também tem o mesmo significado em português: piropo, uma espécie de carta de amor de séculos passados, um antecessor das músicas românticas.

Chico também fala que todo compositor sempre quer fazer grandes canções de amor, e que são estas músicas, estes piropos, que definiram os rumos da grande arte popular no século 20. “Agora, existe a anti-canção, que é o rap, que é falado, não tem poesia, que esquece a melodia. Ele pode ser a tendência daqui pra frente”, analisou o compositor -não criticando o estilo, mas sim refletindo sobre a realidade da cultura popular nos últimos anos.

Entretanto, por mais afastada que esteja do gosto da massa, a canção romântica sempre existiu e continuará existindo – enquanto existir o amor entre um homem e uma mulher (ou entre dois homens, ou entre duas mulheres), haverá alguma “trilha sonora” sendo executada. E, anos e anos depois, os casais ouvirão determinadas canções e dirão: “Você não lembra? É a música que tocou no nosso primeiro encontro”.

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Estas geralmente são os piropos que Chico Buarque falou. Ele compôs várias delas, algumas desconhecidas do grande público. Entre elas, uma chamada justamente de Romance: “Te sequestrei / vou te reter pra sempre na minha ideia / em teu lugar talvez fique alguma tonta / uma dublê / uma mulher alheia…”. É justamente uma composição desbragada, claro que no estilo elegante e fluido de Chico.

Mais desbragada ainda é Todo O Sentimento, dele e de Cristóvão Bastos – que é o autor do brilhante arranjo da versão cantada por Chico no álbum Ao Vivo No Paris Le Zenith. A letra é uma declaração emocionada de um amor “que seja eterno enquanto dure”: “Prefiro não dormir / até se consumar / o tempo da gente / prefiro descobrir / o tempo de te amar / te amando devagar e urgentemente / (…) / depois de te perder / te encontro com certeza / talvez no tempo da delicadeza / onde não diremos nada / nada aconteceu / apenas seguirei como encantado / ao lado teu”. Quem não gostaria de dizer isso à pessoa amada, quem sabe em uma carta de amor?

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Chico Buarque escala Vinícius de Moraes como um dos, nas palavras dele, “grandes piropeiros do Brasil”. Não há como negar que o poeta soube como poucos compor canções de amor – inclusive sendo o responsável pela mudança no perfil da composição romântica da música brasileira, saindo da fossa e transbordando felicidade. Chega de Saudade é um tema desses, mas há outros, como Você E Eu, dele e de Carlos Lyra: “Podem espalhar que estou cansado de viver / e que é uma pena para quem me conheceu / eu sou mais você e eu”. A letra é curta e direta – nada interessa que não seja o meu amor, entendido?

Para Elis Regina, especialista no assunto, a maior “cantada” da música brasileira é Minha Namorada, também de Vinícius e Lyra – citada, como visto, por Chico em seu DVD. Se alguém estiver naquele vai-não-vai do início de relacionamento, pode muito bem decorar a letra e fazer aquela serenata de surpresa: “Se você quer ser minha namorada / oh, que linda namorada / você poderia ser / se quiser ser somente minha / exatamente essa coisinha / essa coisa toda minha / que ninguém mais pode ser / você tem que me fazer um juramento / de só ter um pensamento / ser só minha até morrer / (…) / Os seus olhos têm que ser só dos meus olhos / e os seus braços o meu ninho / no silêncio de depois / e você tem que ser a estrela derradeira / minha amiga e companheira / no infinito de nós dois”.

Para quem conheceu a vida de Vinícius, sabe que o que está escrito na letra de Minha Namorada é na verdade a forma como ele próprio lidava com os relacionamentos. Foi assim com Tati, com Lila Bôscoli, com Lucia Proença, com Cristina Gurjão – e com as outras cinco… O poeta se entregava com tanta paixão que esquecia até mesmo que estava casado com uma ao se apaixonar por outra. E talvez por esse estilo conseguiu manter relacionamentos razoavelmente educados com suas ex-mulheres.

Vinícius fez escola e influenciou toda a geração seguinte -que tem em Chico Buarque seu expoente. Mas também tem outros grandes “piropeiros’.

Como Ivan Lins, com Vieste (“Vieste na hora exata / com ares de festa e luas de prata / vieste com encantos, vieste / com beijos silvestres colhidos pra mim / (…) / vieste com a cara e a coragem / com malas, viagens, pra dentro de mim / meu amor…”) e Vitoriosa (“Quero / tua risada mais gostosa / esse seu jeito de achar / que a vida pode ser maravilhosa…). Na época destas composições, o tímido compositor virou uma espécie de símbolo sexual da intelectualidade -abaixo, claro, de Chico.

Para alguns estudiosos, uma das maiores canções de amor já escritas em português é Meu Bem Querer, de Djavan. Sintética e envolvente, a música é, na definição do pesquisador Zuza Homem de Mello, “uma carta de namorados”. Eis a letra na íntegra: “Meu bem querer / é segredo, é sagrado / está sacramentado em meu coração / meu bem querer / tem um quê de pecado / acariciado pela emoção / meu bem querer, meu encanto / to sofrendo tanto / amor, e o que é o sofrer / para mim que estou / jurado pra morrer de amor”. Não há coração duro que resista à tanto romantismo.

Que também está impregnado em Olha, uma das grandes composições de Roberto e Erasmo Carlos: “Olha, você tem todas as coisas / que um dia eu sonhei pra mim / a cabeça cheia de problemas / não me importo, eu gosto mesmo assim / (…) / olha, vem comigo onde eu for / seja minha amante e meu amor / vem seguir comigo o meu caminho / e viver a vida só de amor”.

Músicas não faltam, como se viu. Só com as citadas acima, podemos fazer um belo playlist para um jantar à luz de velas – e nem foram incluídas aquelas canções para dançar de rosto colado. Todas, sem exceção, usam palavras simples (algumas simplórias) e tratam de um tema aparentemente batido, mas que sempre é atual. E é por isso que as canções de amor nunca deixarão de existir. Afinal, até no peito de um desafinado também bate um coração.