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Na Flip 2019, Marcelo D’Salete segue sua missão de repensar o passado

O quadrinista e professor Marcelo D’Salete, vencedor do Prêmio Eisner, o Oscar dos quadrinhos, debateu com a ativista local Marcela Cananéa sobre a importância da resistência de comunidades “tradicionais” no Brasil – seus livros premiados, Cumbe e Angola Janga (editora Veneta), tratam dos temas da escravidão no período colonial, por uma perspectiva particular dos próprios escravizados. O encontro ocorreu na manhã desta sexta-feira, 12, na programação da 17.ª Festa Literária Internacional de Paraty.

“No momento político atual, esses grupos sofrem diversas ameaças”, lamentou o quadrinista, retomando um tema recorrente nesta Flip, falando sobre quilombolas e indígenas. “Mas eles têm uma maneira de lidar com a terra e com espaço muito própria, e quando a gente vê uma série de políticas e ações para excluir a diversidade, com o conceito de que tudo pode ser vendido, é de se notar uma ignorância atroz. É não compreender nossa história e o conhecimento produzido por essas comunidades. Eliminar a diversidade planifica um modelo que só beneficia um determinado grupo de pessoas no poder há muito tempo. E contra isso, nós estamos aqui”, disse o escritor, aplaudido no evento que ocorre na cidade do litoral fluminense.

Ele também comentou o fato de suas histórias serem agora utilizadas em escolas. Com um grau de sofisticação elevado, D’Salete usa a ficção para construir imagens históricas de pessoas negras no período colonial. A representação mais antiga, de sua época como estudante, explica, geralmente mostrava os negros em situação de submissão – contribuir para a mudança dessa percepção é uma de suas missões.

“Ao falar da história do negro no Brasil, na educação, existo algo muito perverso: relacioná-lo sempre à escravidão”, disse. “Tem uma história muito rica anterior a isso, e uma história grande de resistência ao que aconteceu ali. Quero reaver essa memória para ter um contraponto para mostrar para jovens e crianças”, comentou.

Ele compartilhou com alegria uma mensagem de uma estudante de segundo ano do ensino médio que lhe disse ter gostado muito de um de seus livros – “mesmo que fosse leitura obrigatória”.

Cananéa, ativista de comunidades indígenas, quilombolas e caiçaras da região de Paraty, comentou o recente recebimento de patrimônio mundial da Unesco por Paraty. “A cultura viva das comunidades tradicionais tem um valor muito grande dentro desse título, que pode ser um instrumento de luta. Por ser um patrimônio mundial, agora tem que ser valorizado por todos. É um entrave mostrar as nossas lutas para as pessoas de fora, falar de preservação da natureza, etc. Essa é uma grande conquista.”

Ela também comentou a importância histórica de Paraty na colonização do Brasil, por ser ponto de chegada para muitos escravos e ponto de escoamento do minério de Minas Gerais. A construção da BR 101 nos anos 1970 desloca, explicou, muitas das comunidades caiçaras da região em direção à serra, o que causa uma série de rupturas nas culturas e os expõe a situações de perigo.

“Nossa resistência se dá no dia a dia, para se manter no território, mas temos que lutar para conquistar direitos básicos também”, comentou. “Não adianta o quilombo ser titulado, ter demarcação de terras, se não conseguimos acesso a educação, saúde, energia elétrica.”

Antes de encerrar a discussão com um poema de Luís Perequê, ela citou Euclides da Cunha, homenageado desta edição da Flip. “O Euclides falava que os sertanejos eram homens fortes. Aqui, os mestiços também são fortes. São várias culturas se conectando. O nosso litoral não deixa de ser os sertões aqui também.”

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