“Como eu se fiz por si mesmo” (sic). Corrigida, a famosa máxima de Jamil Snege cairia como uma luva para descrever a trajetória do cantor e compositor curitibano Grafite, de 37 anos, e ajudaria a explicar como ele deixou os teatros e bares da vida em Curitiba para se tornar o músico brasileiro de maior sucesso na Bélgica. O músico fica na cidade até o final do ano, para participar da gravação do próximo disco do grupo folclórico Meu Paraná – do qual fez parte – e de um disco de samba em Vitória (ES).

Seria fácil para Grafite conquistar o respeito, a admiração e a babação de ovo da intelligentsia nativa. Afinal, carrega no DNA o pedigree de Lápis, um dos maiores sambistas do Paraná – o que naturalmente abriria portas na cidade. O garoto preferiu arrombá-las.

Nunca se sentiu confortável na pele de “herdeiro”. Menino pobre, criado pelas tias e pela avó e testemunha silenciosa das aventuras boêmias do pai artista, desde muito cedo Grafite procurou desvincular-se da sombra de Lápis. Compôs a primeira música aos 10 anos, com um título emblemático: Eu vou sair desta cidade. Só não se podia imaginar que iria tão longe.

Aos 13, estreou na televisão, no programa Mário Vendramel. No ano seguinte, passou a tocar no grupo folclórico Gralha Azul. E, antes de completar 15 anos, perdeu o pai. Passou então a se apresentar em bares e casas noturnas -sem porém jamais usufruir do sangue azul musical. Grafite, que nessa época levava uma vida dupla: à noite nos palcos e durante o dia com trabalhos menos glamourosos, como office-boy na Telepar e em O Estado do Paraná. “Gostava de escrever. Queria ser jornalista”, relembra.

Em pouco tempo Grafite já não era mais lembrado como “o filho do Lápis”. Era reconhecido como autor independente e singular. E seguiu tocando suas músicas na noite – tanto em bares e teatros “oficiais” como na “noite pesada” – boates, casas noturnas. E orgulha-se desse início: “Ali eu conhecia tanto a galera da noite como os novos músicos. Para mim, a noite foi a ponte entre os músicos da antiga e os da nova geração. E naquela época eu nem bebia, passava a noite à base de Coca-Cola”.

Em 1984, com 18 anos, já tinha percorrido quase todos os bares e casas noturnas de Curitiba, andado pelo País, e começou então a fazer shows e trilhas para peças de teatro. Naquele ano, realizou seu primeiro show – Fé-Menino -, no antigo Teatro de Bolso de Curitiba. Foi recorde de bilheteria na casa. No ano seguinte, assinou a trilha das peças Mulheres de Atenas, de Augusto Boal, e Vampirei em você no luar de cetim, de Nelson di Cordova.

Leminski

Foi nesse período que conheceu Paulo Leminski, Alice Ruiz, Carlos Careqa e todos os protagonistas da fervilhante cena cultural da Curitiba dos anos 80. “O Leminski me apoiou muito, ele me dava uma importância e um valor que eu nem sabia que tinha”, conta. Graças à amizade com o “Polaco”, conheceu o ídolo Caetano Veloso (“que me pediu para afinar seu violão, sentou ao meu lado no Fusca do Leminski e freqüentou a minha casa”), Gilberto Gil, Peninha e outros grandes nomes da MPB.

Mesmo assim, Curitiba, o Paraná e mesmo o Brasil estavam ficando pequenos para o jovem músico. Em 1989, o grupo de música folclórica Meu Paraná – do qual faziam parte Grafite e sua tia Mide – foi convidado pelo Centro Galego de Bruxelas para se apresentar em cinco cidades belgas no Festival de Música do Mundo. Os paranaenses foram escolhidos para representar a música do sul do Brasil, e, com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura, partiram para a Bélgica.

Em duas semanas, o grupo fez a turnê e voltou a Curitiba. Sem Grafite, que resolveu ficar na Bélgica. “Fui para ficar quinze dias, para voltar lá pelo dia 13 de novembro, e acabei ficando até o final de dezembro. E mesmo assim, só voltei para arrumar minhas coisas e voltar para lá”, explica. Nesse meio tempo, tocava música brasileira na rua e dormia num porão. Sem falar uma palavra de francês ou inglês. Juntou 600 dólares para a viagem, e quando voltou, em janeiro de 1990, não tinha mais que 50.

A chance

Matriculou-se então em cursos gratuitos de violão clássico e jazz, enquanto seguia com suas apresentações nas ruas de Bruxelas. Começou então a tocar em bares que pediam música brasileira, e a organizar festas temáticas particulares com os ritmos do Brasil. Durante os shows em bares e boates, aos poucos começou a encaixar suas canções no repertório. Até que a RTBF (a rádio e TV belga) o convidou para participar de um programa. Em 1993 foi convidado para concertos autorais em diferentes cidades belgas e também na Alemanha, Suíça, Luxemburgo e Itália, além de gravar com a importante cantora belga Donna Winner.

Dois anos depois, gravaria um CD e um videoclipe com a cantora espanhola Alicia Valle, com distribuição pela Europa e América do Sul, e em 99 gravou no Brasil o CD Além de mim, da cantora Eliane Bastos. No ano seguinte, gravou na Bélgica o CD ao vivo Flanagans, e em 2001 um CD demo com Elaine Bastos, intitulado Matetê. No ano passado, a RTBF voltou a convidá-lo, dessa vez para gravar três faixas de um CD de world music, Le monde est un village. Ele escolheu as suas Matetê e Eid, e Paticumbá, de autoria do pai, Lápis. “Foi a primeira música dele gravada na Europa”, orgulha-se.

Este ano, em companhia dos parceiros blauco Sölter e Alessandro Krammer, Grafite gravou o CD Meio dia e dez, lançado em abril. O disco tem sete músicas suas, incluindo uma “parceria” com o pai – justamente a faixa-título. “É uma espécie de parceria, porque ele sempre dizia essa frase – “Meio e dia e dez” – quando chegava em casa”.

Agora, ele se prepara para uma turnê pela Alemanha, que deve acontecer em maio de 2004, e arma o bote para conquistar o restante da Europa. E o Brasil, nunca mais? “O Gilberto Gil quando me encontra diz que eu tenho que tocar no Brasil, para o meu povo. Por outro lado, estou criando minha filha aqui, com as melhores condições. Ela é apaixonada pelo Brasil, mas só Deus sabe quando eu vou voltar”.

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