O poeta Ramon Nunes Mello era jornalista do extinto Portal Literal quando recebeu uma caixa com livros feitos com apoio da Petrobras. Um deles chamou sua atenção pelo título: Todos os Cachorros São Azuis. Deu uma olhada, viu que se tratava de um livro que narrava da internação do protagonista em um hospício à sua saída, leu nos intervalos e adorou, e quis entrevistar o autor. Do outro lado da linha, Rodrigo de Souza Leão disse que daria, sim, a entrevista – mas que Ramon deveria ir à sua casa, de onde não saía havia 20 anos. Rodrigo foi diagnosticado com esquizofrenia em 1990.

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Assim começa uma história de amizade (Rodrigo continuou telefonando para Ramon, como fazia com escritores e amigos, nas quintas, às 15h, mesma hora da entrevista). Durou pouco, é verdade – Rodrigo morreu um ano depois, no dia 2 de julho de 2009, aos 43, numa clínica psiquiátrica, no Rio. Mas desde então Ramon vem batalhando pela publicação e divulgação da obra do escritor, da qual virou curador.

Nos 10 anos da morte de Rodrigo, e com o fim dos contratos de edição que o autor fez com a 7Letras e que Ramon fez com a Record para os lançamentos póstumos, os livros vão para a Demônio Negro.

O primeiro lançamento, previsto para agosto, será justamente Todos os Cachorros São Azuis, que já virou peça e teve seus direitos para o cinema vendidos para Cauã Reymond.

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Até 2020 a editora espera relançar Me Roubaram Uns Dias Contados, Carbono Pautado e O Esquizoide: Coração na Boca, além de apresentar a antologia Lowcura, com os e-books de poesia lançados na internet – ele foi pioneiro na publicação digital -, e com textos inéditos encontrados em caixas e mais caixas de disquetes e em pastas com datiloscritos. A organização de Lowcura (o título remete a um dos blogs de Rodrigo) será feita por Ramon e por Jorge Lira, que trabalhou na organização do acervo digital do autor, doado para o Arquivo Museu de Literatura Brasileira na Casa de Rui Barbosa. Tudo isso será feito com o padrão que caracteriza a Demônio Negro: edições em capa dura, revestidas em tecido e gravações tipográficas – e usando as telas do escritor.

“O selo Demônio Negro tem a sorte de ter no seu catálogo autores radicais e obras que sempre primam pela invenção, mais que a novidade”, diz Vanderley Mendonça. Foi o poeta Donizete Galvão (1955-2014) que chamou sua atenção para o trabalho de Rodrigo, que falou sobre a esquizofrenia dele e sobre como ela era determinante em sua obra.

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Existência febril

A vida de Rodrigo de Souza Leão (1965-2009) ganhou uma nova cor quando seu romance de estreia, Todos os Cachorros São Azuis, foi finalista do Prêmio Portugal Telecom. Era 2009. Eufórico, ele passou a sair mais de casa e a frequentar a Escola de Artes Visuais do Parque Lage – em três meses, pintou 60 telas (a maioria foi doada para o Museu de Imagens do Inconsciente).

Naquela época estava no ar a novela Caminho das Índias e Rodrigo começou a se incomodar com o personagem Tarso, esquizofrênico, dizendo que as pessoas achariam que ele era igual e ficariam com medo dele, pensando que ele poderia matar alguém. Ele chegou a escrever um artigo questionando a representação da doença. Porém, começou a ter medo de também se tornar agressivo e pediu para ser internado. Foi numa quinta para a clínica psiquiátrica. Na terça, 2 de julho de 2009, chegou a notícia de que ele estava morto. À família não importa saber se foi suicídio, overdose acidental ou causas naturais. Não ia mudar nada.

Na última vez que o pai o viu, no domingo, quando levou o Jornal do Brasil com seu artigo publicado, ele estava “contido, numa agressividade fora do comum”, relembra hoje, emocionado. Mas houve uma carta de despedida, bonita, tranquila, escrita um mês e meio antes da internação que, aos 81, Antonio Alberto de Souza Leão lê para a repórter ao telefone.

Antonio anda triste, saudoso, com o aniversário de morte do filho. Mas as novas edições que a Demônio Negro vai fazer da prosa e da poesia de Rodrigo servem como um alento. “É muito bom para mim e para minha mulher saber que Rodrigo ainda é lembrado. Torço muito para que as pessoas o leiam.” E completa: “A vida dele foi a arte. Na literatura e na pintura, ele sublimou todas as limitações que ele encontrava para ter uma vida normal”.

Nascido em 1965, formado em Comunicação, jogador de polo aquático e triatleta, Rodrigo foi um bom leitor e um escritor compulsivo. Ele se isolou em casa depois do primeiro surto, em 1990, quando era auxiliar de escritório em uma empresa pública, mas nunca quis perder contato com o mundo. Pelo contrário. Tinha blogs, sites, e-zines. Trocava e-mails com escritores. Adorava falar ao telefone e fazer entrevistas.

O escritor Ronaldo Bressane foi entrevistado por Rodrigo, e depois eles passaram a se corresponder. “E assim fiquei conhecendo aquela figura que condensava na poesia um doce lirismo, um humor anárquico, muita curiosidade e loucura em doses mínimas, mas de potência tão relativamente intensa quanto um micrograma de LSD”, diz. Hoje Bressane estuda a obra do autor, e de outros escritores, para sua dissertação de mestrado que investiga o cruzamento entre loucura e literatura no Brasil.

O poeta Marcelo Montenegro também foi entrevistado por Rodrigo e acompanhava a obra dele em blogs. “Gosto muito da poesia do Rodrigo. Ela promove um desarranjo na nossa percepção, ela te tira do chão, da coisa cartesiana e tal. E aí entra esse dado indissociável dele e da sua obra que é a esquizofrenia.

Até porque o Rodrigo trouxe isso para o centro da escrita. Ele fez da sua condição psíquica não só um material bruto para os seus textos, mas também um filtro pelo qual olhou para o mundo, para a condição humana”, comenta.

Para Montenegro, mesmo nos momentos mais obscuros ou melancólicos, seus poemas têm senso de humor. “Às vezes estranho e inesperado, mas o humor é sempre um dado importante, incluindo aí ironia e autoironia. Sem contar o poder de comunicação e o senso apurado de musicalidade e ritmo”, avalia.

Ele diz ainda: “A consciência, e mesmo o distanciamento crítico que ele conseguiu manter dessa sua terrível, como diz no poema Fio Invisível, ‘existência febril’, deve ser posta em conjunto com a sua capacidade poderosa de transformar isso tudo em linguagem. Por isso acho uma pena quando ele é visto apenas como um ‘personagem excêntrico’, como um ‘criador esquizofrênico’ – o que de fato ele foi, mas foi ‘também’ um grande escritor”.

“A literatura era o que dava sentido à vida dele”, confirma Ramon Nunes Mello. “A vida dele era a literatura, a linguagem – como ele se comunicava com o mundo e organizava a mente dele. Toda a liberdade que a poesia permite dialogava com a loucura que ele vivenciava. A literatura foi o passaporte dele para o mundo”, finaliza o curador que quer publicar ainda Brincar de Viver (infantil dedicado à sobrinha), reunir as entrevistas que ele fez e lançar todos os inéditos.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.