Mangueira sem D. Zica às vésperas do Carnaval

Rio – Ontem foi dia de luto no samba carioca. Logo de manhã, morreu Euzébia Silva Oliveira, a Dona Zica, viúva de Cartola, o fundador da Estação Primeira de Mangueira, a escola mais antiga do País e a campeã do último carnaval.

Ela havia sido internada três vezes em 2002, mas sua morte surpreendeu os amigos, que preparavam a festa dos seus 90 anos, no dia 6 de fevereiro, com missa na quadra da agremiação e samba noite adentro. Até a virada do ano, sua saúde era estável. No primeiro domingo de 2003, fez as honras na Mangueira para receber o cantor Gilberto Gil, então recém-nomeado ministro da Cultura.

O cardiologista Roberto Orcades disse que ela estava animada com o carnaval. “Ela esteve no consultório na semana passada e disse que ia sair na Mangueira de qualquer jeito”, lembrou ele. “Dona Zica achava que era uma criança, daí o número de internações. Ela abusava demais”. A neta de Dona Zica, Nilcemar, informou que ela preparava o lançamento do livro de receitas Dona Zica -Tempero, Sabor e Arte, contando os segredos de seus 80 anos de cozinheira e banqueteira. “Ela estava superfeliz, chegou a dizer que ficava com medo por estar tão bem”, comentou Nilcemar.

Viver intensamente foi o segredo de Dona Zica, nascida e criada na Mangueira. Sua família não era de sambistas, mas a irmã, Clotilde, ou Dona Menininha, casou-se com o ferroviário e compositor Carlos Cachaça, que participaria da fundação da Mangueira. Cartola e Zica se conheceram nessa época, mas nada houve entre eles, pois ambos eram casados: ele com a dona-de-casa Deolinda e ela, com o pai de suas duas filhas, Vilma, já falecida, e Regina. O romance ocorreria nos anos 50, com os dois já viúvos e Cartola afastado da Mangueira, na miséria, e envolvido com Donária, sua segunda mulher.

“Zica foi a luz na vida dele. Cartola era um sonhador, não ligava para dinheiro, saúde ou coisas materiais. Ela era prática, ativa, sustentava as duas filhas e viu as possibilidades dele”, conta a diretora do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio, Marília Barboza, amiga do casal e biógrafa do compositor. “Eles viveram juntos durante doze anos até se casarem em outubro de 1964. Na época, ela riu de si mesma, dizendo que uma senhora já de idade como ela se casava como se fosse uma bandeirante”.

Inspiração

Mesmo sem compor ou cantar, Dona Zica foi fundamental na produção do marido. Ela inspirou Cartola em sambas inesquecíveis, como As Rosas não Falam e Tive Sim (veja matéria nesta página). Esta última, feita nos anos 50, foi uma resposta aos ciúmes dela. Às vesperas do casamento, em 1964, ele ainda fez Nós Dois.

Nessa época, o casal tinha o ZiCartola, restaurante na Rua da Carioca, no centro, onde os quitutes de Dona Zica serviam de fundo para a música de Paulinho da Viola, Clementina de Jesus, Zé Kéti, Elton Medeiros e outros sambistas que estrearam lá, em shows produzidos por Hermínio Bello de Carvalho. O restaurante só durou dois anos, mas deixou marcas até hoje na cultura brasileira. “Na época, foi vendido a preço de banana para o Jackson do Pandeiro”, lembra Marília.

Sem o restaurante, Dona Zica insistiu para que o marido virasse músico profissional. “Ela queria que ele fizesse shows, compusesse, mas ele não ligava para nada”, diz Marília. “Só em 1974, quando gravou o primeiro disco para a Marcus Pereira, Cartola atentou para a possibilidade de ganhar dinheiro. Então, passou a compor e a trabalhar muito, como se tentasse recuperar o tempo perdido”.

Liderança

Com a morte do compositor, em 1980, Dona Zica tornou-se líder da Mangueira, ao lado de Dona Neuma, filha de outro fundador da escola e sua amiga inseparável, ambas matriarcas do morro, onde nada era decidido sem as suas opiniões. Dona Neuma morreu em julho de 2000, e Zica continuou firme como símbolo da Mangueira e, por extensão, do próprio samba.

No ano passado, participou do lançamento do Centro Cultural Cartola, instalado no antigo prédio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em frente do morro, e tinha tudo pronto para sair no próximo carnaval. A morte a pegou antes e a Mangueira, na noite passada, ficou acordada para velar sua primeira-dama, cujo enterro acontece hoje de manhã, no cemitério do Caju, na zona norte. (Colaborou Roberta Pennafort)

Parceira de vida do mestre Cartola

Rodrigo Browne, especial para O Estado

Existem histórias que marcam a nossa vida para sempre. Num desses dias, mês de dezembro, calor danado, fui comer um vatapá na quadra da Mangueira. Coisa fina. Lá, conversa vai, conversa vem, me contaram duas história ótimas dos sambas que o Cartola compôs. Histórias que a gente não esquece.

Na primeira, o sujeito (que já não lembro o nome) me contou que o Cartola tinha feito o samba O Mundo é um Moinho para Regina, sua filha adolescente que, com 15 anos, queria sair de casa. Uma história poética de um pai experiente que canta para a sua filha os inesquecíveis versos: “Ainda é cedo amor, mal começaste a conhecer a vida/ Já anuncias a hora de partida/ sem saber mesmo o rumo que irás tomar”…

A conversa continuou. O samba da vez era o clássico, As Rosas não Falam. A mesma fonte, “mangueirense de carteirinha”, contou que quando o Cartola se mudou para Jacarepaguá, por motivos de saúde, seu quintal vivia cheio de rosas. Depois, de volta à Mangueira, no seu jardim não crescia nenhuma flor. Intrigada com essa diferença entre os dois jardins, Dona Zica teria comentado com Cartola porque na Mangueira não nasciam as rosas e ele lhe respondeu: “Sei lá, as rosas não falam…”. E pouco depois fez o samba. Saí da mangueira feliz da vida com duas histórias “definitivas” sobre a música brasileira.

No quintal da Zica

“Não é nada disso não”, me corrigiu Dona Zica, dois anos depois, aos 86 anos, numa entrevista memorável no quintal de sua casa.

“O samba O Mundo é um Moinho foi feito para um rapaz que contou para o Cartola que tinha tido uma desilusão amorosa. Ele namorou uma menina, colocou ela em casa, fez tudo. Depois de tudo arrumado ela disse que não queria mais nada com ele e foi embora. O Cartola ouviu essa história e depois de uns dias fez O Mundo é um Moinho. Não tem nada de filha não”, reiterou a viúva, que aproveitou para emendar: “E o Cartola ia falar de triturar sonhos mesquinhos para a própria filha?”.

A matriarca aproveitou e contou a verdadeira história da composição As Rosas não Falam: “O Nuno Veloso, parceiro do Cartola, chegou aqui no morro e levou a gente para passear de carro. Nós fomos até uma chácara onde ele comprou uma muda de rosas para o Cartola. Ele plantou a roseira aqui no quintal de casa (na Mangueira) e ela cresceu. Dava rosas à beça. Um dia eu estava com ele apanhando umas rosinhas para colocar no santo e falei: “Cartola, o Nuno deu essa roseira pra você com vontade, porque todo dia dá muitas rosas” e ele me respondeu: “Sei lá Zica, as rosas não falam…”. Aí se passaram quinze dias e ele veio com a música As rosas não falam, que caiu na boca do povo”, relembrou a companheira.

Sempre generosa e bem humorada, Dona Zica contou mais uma, quando perguntei se o Cartola fazia muitos sambas a partir de situações do dia-a-dia. Respondeu que quase sempre sua inspiração surgia assim. E contou a história de Tive Sim:

“Esse samba surgiu numa discussão nossa, coisa de marido e mulher. Eu comentei que ele não gostava de mim, que gostava era das mulheres que teve antes de me conhecer. A resposta veio com a música: “Tive sim, outro grande amor antes do seu, tive sim?. Uma beleza”, comoveu-se a viúva.

Muito feliz, ela lembrou ainda dos amigos que o casal colecionou durante a vida. “Eles são a minha maior riqueza”, dizia orgulhosa. E isso, mais do que uma história, é uma lição que procuro seguir.

Rodrigo Browne é jornalista, produtor e apresentador do programa Samba de Bamba, há 7 anos na Educativa FM.

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