Longa “Nascido para Matar” estreia em versão adolescente

Há um momento de Ender’s Game – O Jogo do Exterminador em que o garoto escolhido para integrar o elenco de pequenos guerreiros treinado por Harrison Ford entra em choque com outro menino do grupo. Neste momento específico, o outro está de cabeça e olhares baixos e sem mover a cabeça, só deslocando o olhar, fixa o protagonista (Asa Butterfield) de baixo para cima, e abre um sorriso. Você já viu este plano, com outros atores e num filme melhor. É um momento essencial de Full Metal Jacket, de Stanley Kubrick, de 1987. O filme de guerra do grande Kubrick – sobre o Vietnã – não é bem sobre a guerra no Sudeste Asiático, mas sobre a linguagem.

Kubrick filmou num hangar de Londres, perto de casa. Mostrou o batismo de sangue de jovens soldados, a sua preparação para o combate – no Brasil, chamou-se “Nascido para Matar”.

Gavin Hood era jovem na África do Sul quando viu “Nascido para Matar”. Tinha 24 anos – nasceu em 1963 – e ainda demoraria uns dez anos para virar cineasta, mais 42 para receber o Oscar de filme estrangeiro, em 2005, por Tsotsi. “Foi uma revelação”, contou ele para o repórter, num encontro em Los Angeles.

“Agora que você fala, sim, é uma repetição exata do plano de Kubrick. Mas eu não pensei comigo – ‘Vou fazer assim’. Deve ter sido algo completamente inconsciente, mas a verdade é que era muito jovem e o filme me marcou. Não é um filme de guerra. É sobre outra coisa, sobre os jovens, sobre a palavra. Não é o meu Kubrick preferido, mas é um grande filme. Devo ter pensado em algum momento, mesmo sem verbalizar para mim mesmo, que Ender’s Game é o Nascido para Matar infantojuvenil.”

Ender’s Game baseia-se numa franquia e, nos EUA, não foi o estouro de bilheteria que Hood e os produtores esperavam. Nada parecido com Harry Potter, Crepúsculo nem Jogos Vorazes. Mas o filme não é ruim. É bem feito, tem ótimo elenco, talvez lhe falte mais emoção para eletrizar o público, e não apenas os jovens. E, considerando-se que toda a publicidade é centrada em Harrison Ford – o Han Solo da série Star Wars, o Indiana Jones -, pode contar pontos (negativamente) que ele interprete um personagem antipático.

Ender’s Game surgiu como conto, virou uma série de livros de Orson Scott Card. Na Terra do futuro, Harrison Ford é o instrutor que escolhe jovem para liderar as forças na batalha decisiva contra os extraterrestres. Ele manipula o garoto, mas a extensão dessa manipulação só fica clara no desfecho – já conhecido dos leitores.

Em Los Angeles, onde também conversou com o repórter, Ford reconheceu que possui uma imagem no imaginário do público, mas detestaria ter de ficar preso a ela. “Cada vez mais me desinteresso pelo personagem em si. É mais interessante a forma como ele se encaixa na história. Como ator, considero-me parte de um processo para contar histórias. E não faz mal se o personagem é vilão ou herói, simpático ou antipático. Não julgo, nunca julguei moralmente meus personagens. Interpretei alguns éticos, outros nem tanto. O que ninguém pode me acusar é de ter ajudado a contar histórias desinteressantes ou que promovam a discriminação e o ódio.”

Depois de Tsotsi, sobre o apartheid, Gavin Hood incursionou pela ficção científica com X-Men – Origens e volta ao futuro com O Jogo do Exterminador. “O mais interessante desse filme e também o mais complexo é o lance do jogo. A guerra vira uma brincadeira de adultos, às quais as crianças, os jovens são admitidos. Entendo que a maioria do público vai ver o filme pela diversão, mas gostaria que as pessoas parassem para pensar um pouco. Card (o escritor) atualizou sua história original em 1991 para se adaptar às mudanças políticas da época, bem antes até da série. A política é sempre fundamental, mas, claro, nunca sabemos como o público vai reagir.”

Gavin Hood considera-se privilegiado. “Ter atores como Harrison (Ford) e Ben Kingsley é o sonho de todo diretor. Asa (Butterfield), o garoto, já contracenou com Ben em A Invenção de Hugo Cabret (de Martin Scorsese). Ben me propôs as tatuagens dos maoris para seu personagem. Adorava ver Asa contracenando com ele de igual para igual. Ben não o intimidava, e essa já é a essência dos personagens.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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