Pinturas históricas quase sempre provocam discussões por seu conteúdo narrativo ou ideológico. No caso da monumental tela A Batalha do Avaí, do paraibano Pedro Américo (1843-1905), no acervo do Museu Nacional de Belas Artes, foram ambos os motivos que causaram reações negativas de quem encomendou a obra ou figurou no centro dela – respectivamente, o imperador Pedro II e o Duque de Caxias. Pintada em Florença entre os anos 1874 e 1877, a tela, do tamanho de um kitchenette (50 metros quadrados), é analisada pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz e dois de seus orientandos (Lúcia Klück Stumpf e Carlos Lima Junior) no luxuoso livro A Batalha do Avaí, da Sextante Artes, que, para surpresa até da autora, chega à segunda edição um mês após seu lançamento.

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O subtítulo do livro – A Beleza da Barbárie – destaca na capa a ambiguidade desse quadro histórico que deveria celebrar a Dezembrada, fase final da guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) contra o Paraguai, em dezembro de 1868. O acadêmico Pedro Américo, que o imperador mandara estudar na Europa com uma bolsa, tenta agradar seu mecenas homônimo, à beira do ocaso, enaltecendo a grande guerra que consumiu todos os recursos do tesouro entre 1864 e 1870. De um lado, soldados fardados defendendo a “civilização”. De outro, os “bárbaros” paraguaios, retratados quase despidos, descalços e com patuás ao redor do pescoço. Redução a estereótipo era com Pedro Américo mesmo, pintor que, aliás, estudou Ciências Sociais na Sorbonne.

Porém, mesmo financiado pelo Império, ele não deixou de ouvir ecos da campanha contra a Coroa que fortaleceu o Exército e conduziu o Brasil à República dos militares. Vale lembrar que o pintor, na própria Batalha do Avaí, pinta a si mesmo como um soldado com expressão de horror e uma cabeça ao lado esquerdo do quadro em tudo semelhante à decepada de Tiradentes Esquartejado, tela realizada em 1893, quatro anos depois da proclamação da República. Um vira-casaca? Lilia Schwarcz compara Pedro Américo ao neoclássico Jacques-Louis David (1748-1825), que apoiou a Revolução Francesa, pintou seus líderes e depois se bandeou para o time do vitorioso Napoleão.

Outras comparações – desta vez francamente desfavoráveis ao acadêmico – foram feitas por críticos de sua pintura, que viram tanto em A Batalha do Avaí como em Independência ou Morte (1888) dois descarados plágios dos pintores Andrea Appiani e Ernest Meissonier, respectivamente. O cavalo de Caxias pintado por Pedro Américo seria o de Napoleão num quadro de Appiani (1754-1817). Já de Meissonier (1815-1891), ele resolveu copiar a cena inteira de A Batalha de Friedeland (1875) pintada pelo francês, em que este também retrata Napoleão, figura polivalente que tanto serve de modelo para Américo pintar Caxias como D. Pedro I, este dando o grito de independência às margens do Ipiranga.

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Enfim, plágio em pintura não era exatamente incomum no século 19, quando os pintores estudavam na Europa às custas da famosa “bolsinha” de D. Pedro II. Não é, porém, o propósito do livro – concebido por Victor Burton, também designer gráfico do projeto – avaliar afinidades estéticas, mas identificar nos personagens da tela de Pedro Américo sinais ideológicos de manipulação da batalha do Avaí. Lilia Schwarcz diz que o pintor “politizou” a tela, ao retratar os “ordeiros” militares brasileiros contra os “bárbaros” paraguaios.

A historiadora diz que o Império não poupou esforços para registrar a batalha que aniquilou a resistência paraguaia às margens do riacho Avahy, mas que a encomenda, afinal, não serviu bem ao propósito propagandístico do imperador. “O quadro foi visto como republicano”, conta Lilia. “Mas é uma tela ambivalente, eu diria”. Duque de Caxias, o principal comandante na Guerra da Tríplice Aliança, ficou horrorizado quando viu sua farda desabotoada na tela, comentando que nem em seu quarto o pintor o veria desse modo – e ele enviou pelo correio uniformes militares para servir de inspiração a Pedro Américo, que preferiu copiar outro modelo, uma litografia de Gustave Doré retratando a batalha de Montebello (o brasileiro só mudou a cor dos cavalos).

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BATALHA DO AVAÍ – A BELEZA DA BARBÁRIE – Autores: Lilia Moritz

Schwarcz com Lúcia Klück Stumpf e Carlos Lima Júnior. Editora:

Sextante (174 págs. R$ 150).

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.