Ler & reler ou uma louvação do livro

É um amigo precioso e dedicado, o livro. Com ele aberto nas mãos, olhar passeando sobre as suas páginas, embora imóveis, podemos percorrer as veredas do mundo sublunar, em trânsito no cosmos sideral. Fazendo turismo sem passaporte e sem cartão de crédito. O que torna essas viagens e périplos muito menos dispendiosos e arriscados.

Embora acordados, vigilantes, o livro é capaz de nos fazer sonhar histórias das mil e uma noites, talvez mais belas do que as narradas pela Xeherazade insone, na sua coreografia onírica indizível. Embora pobres como Jó, o livro nos oferece riquezas sem conta e tesouros sem par. Além de ser o único amigo que jamais nos trairá ? até porque não nos inveja.

Sedentos de conhecimento, famintos de beleza, o livro sabe saciar a nossa sede e matar a nossa fome, em pantagruélicos banquetes do espírito em disponibilidade. Ele canta no silêncio mais profundo e povoa a solidão mais larga. E tem às vezes dentro das suas entranhas de celulose, espanto e júbilo, emblemas ardentes e insígnias de fogo ? e até mesmo flâmulas de paz, para exorcizar com elas todas as guerras infinitamente estúpidas e inúteis.

O livro ensina. Orienta, aponta caminhos, mostra diretrizes. Esclarece ou erradica dúvidas. Responde a indagações ? até mesmo às sibilinas indagações das esfinges de pedra. É janela aberta para o coração dos homens e telescópio voltado para os latifúndios do mundo. Mais: é espírito materializado ?sub specie aeternitatis? do verbo essencial, tatuado na epiderme branca das folhas que o vento não varre.

Ninguém melhor do que Milton, o poeta de Paradise Lost, soube cantar a grandeza livresca. Diz ele: ?Quem mata um homem mata uma criatura racional, imagem de Deus. Mas quem destrói um livro faz algo pior: mata a própria sombra de Deus gravada na consciência. Esse destruidor é um assassino do espírito?. A propósito, é bom lembrar o Fahreinheit 451, de Ray Bradbury.

Sustento há muito a tese ? que não é só minha, evidentemente ? de que o livro é artigo indispensável, gênero de primeira necessidade. Tal como os alimentos. Sim, o livro é alimento imprescindível ? para o espírito. E eu chego a pensar até que seria bom que o livro integrasse a própria cesta básica. Com redução ou isenção dos impostos que sobre ele incidem.

Mas o hábito, a liturgia da leitura, está em crise. Em todos os quadrantes do mundo. E faz falta. Como faz. É sempre bom ler. Ler bem, naturalmente. A leitura não é aquele ?vice impunu?, o vício impune de que falou Valéry Larbaud. Se for, é o único que merece ser exercitado, fortalecido, estimulado. Até mesmo premiado.

Ler, insisto, é alimentar a mente, é nutrir o espírito com as vitaminas do conhecimento e as proteínas da cultura. Um livro pode ser pão e carne, arroz e feijão, lagosta e bife ?à Camões?. Em termos metafóricos, é claro. Não é possível, afinal, escrever sem metáforas, como ensinava Proust. Mas atenção: há também livros insalubres, indigestos, deletérios, se não letais. É preciso fugir desses como o diabo da cruz. Ademais, ler constitui sempre a possibilidade de descobrir uma obra-prima cuja ignorância ? sentimos isso depois de lê-la ? nos deixaria perpetuamente mais vazios e mais pobres.

Mas, se é bom ler, melhor ainda é reler. A releitura é sempre um reencontro programado com um autor ou um livro que antes nos deleitaram com a magia do seu verbo, o encantamento das suas tramas e a riqueza dos seus personagens, que às vezes parecem mais reais do que aqueles com quem nos acotovelamos diariamente, nas ruas da quotidianidade. É por isso que eu estou lendo cada vez menos livros novos ? e relendo cada vez mais livros antigos. E eu confesso que o lucro tem sido grande. A ginástica física não tem como propósito implantar a ?mens sana in corpore sano?? Pois bem, os músculos do intelecto também podem ser costumeiramente exercitados. Através da leitura sistemática.

Concluo com algumas opiniões ilustres sobre a temática/problemática que venho abordando, ?a vôo de pássaro?. Começo, santamente, com São Jerônimo. O que diz o tradutor da Vulgata Latina da Bíblia? Isto: ?Que um bom livro nunca fique longe das tuas mãos ou dos teus olhos?. Carlyle, o historiador, ensina: ?Tudo o que a humanidade tem sido, feito, pensado, construído, inventado, criado ou lucrado encontra-se como que magicamente preservado nos livros?. E ensina mais ainda: ?A grande universidade do nosso tempo é uma boa coleção de livros?. Agora, uma opinião de Bacon, o filósofo do ?Novum organum?: ?Certos livros devem ser lidos, outros, engolidos, e uns poucos, mastigados e digeridos?.

Finalmente, lembro o conhecido, sempre discutido e sempre discutível aforismo de Oscar Wilde: ?Não há livros morais nem imorais. Há simplesmente livros bem ou mal escritos?. Confesso que pertenço ao número daqueles que não aceitam integralmente a tese. ?Est modus in rebus?.

Mas, fico por aqui. Preciso continuar a minha leitura interrompida de um livro. 

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