Kinks desenterrados

Os indefectíveis terninhos e as franjas desgrenhadas não escondiam a tosqueira sonora promovida pelo Kinks. Quando se fala em invasão britânica, é comum lembrar-se dos nomes mais famosos da geração dos anos 60, que reverteu o processo da música pop e fez o Reino Unido mandar nas paradas dos Estados Unidos e, conseqüentemente, do resto do mundo. Beatles e Rolling Stones são indispensáveis. A barulheira do Who também é bastante citada por aí (sobretudo pela crescente leva de bandas mods dos últimos anos) e nomes menos duradouros como Animals e Herman?s Hermits volta e meia ganham coletâneas que reúnem seus maiores sucessos.

Um nome, porém, permanecia até pouco tempo atrás meio nebuloso na lembrança dos brasileiros, apesar de sua suma importância na evolução do rock nos meados dos anos 60. O Kinks sempre foi muito mais falado (e celebrado pela imprensa) do que propriamente ouvido – e isso se deve ao fato de seu legado fonográfico não pertencer ao acervo das maiores gravadoras do mundo. Além da explosão de canais de troca de arquivos em MP3, outro item possibilitou a (re)descoberta da magia do grupo liderado pelos irmãos Ray e Dave Davies: o lançamento contínuo de álbuns com obras gravadas nas mais diversas fases do grupo.

Em quase três anos, cinco discos espanaram a poeira e fizeram o Kinks tornar-se bem mais acessível do lado de cá do Equador. No começo de 2000, a Abril Music, que detinha os direitos da Castle, disponibilizou simultaneamente com os Estados Unidos a coletânea The Singles Collection, reunindo 25 faixas gravadas pelo grupo entre 1964 e 1970 (lados A e B de compactos lançados pelo selo Original Pye). As franjas e os terninhos foram substituídos nos dois álbuns seguintes, ambos editados pela Sum. The Kinks? Greatest: Celuloid Heroes enfoca a fase posterior (1971 – 1975), quando o grupo, agora um quinteto e contratado pela poderosa RCA, ostentava visual hippie, com longos cabelos e algumas barbas. Já Come Dancing With The Kinks registra o período pós-RCA, agora gravando para a Arista, entre 1977 e 1986 – pegando o começo da “geração MTV”, com a qual a banda flertou através do videoclipe do hit Come Dancing.

Neste final de 2002 chegaram às lojas nacionais outros dois álbuns com músicas dos Kinks. A parceria Globo-Jive-Zomba, nova representante da Castle por aqui, veio com The Best Of The Kinks – You Really Got Me. O disco compila vinte faixas, dezenove delas presentes em The Singles Collection. Por fim, a Trama fez a edição nacional do tributo Give The People What We Want – Songs Of The Kinks. O álbum, gerado em parceria entre a Sub Pop e pequenos selos de Seattle, coloca músicos e bandas da cidade e redondeza fazendo suas próprias versões de clássicos e obras secundárias dos britânicos.

Legado

Agora se faz necessário ressaltar o legado deixado pelos Kinks. Em primeiro lugar, vale lembrar que o quarteto foi o nome de sua geração que soube misturar na medida exata pancadaria e melodia. É só ouvir seus terceiro e quarto singles, respectivamente You Really Got Me (hit supremo do início da carreira) e All Day And All Of Night para identificar poderosos riff comandados por guitarras distorcidas e vocais berrados. Isto em 1964, quando tosqueira ainda era palavra incomum na mente dos jovens ingleses que sonhavam em se transformar em popstar.

Nesta época, o Kinks também se diferenciava de seus contemporâneos pelo teor das letras. Os Beatles queriam segurar na mão da amada e louvar o seu amor. Mick Jagger ainda não havia descoberto a função do rebolado e do bocão na construção da imagem de sensualidade e os Stones ainda engatinhavam na cartilha de como ser um bad boy. Enquanto isso, Ray cantava versos de duplo sentido e colocava a obscenidade à mostra já no batismo da banda – a gíria “kinky” significa algo como “sacaninha”. Talvez tenha sido por isso (embora nenhum motivo específico tenha sido dado até hoje) que o grupo tenha sido expressamente proibido de entrar nos Estados Unidos pelos quatro anos posteriores ao final da excursão americana do verão de 1965.

Com o passar dos anos, Ray foi desenvolvendo uma grande habilidade em construir versos de rara beleza literária dentro do rock. Suas letras ganhavam em beleza com vocabulário incomum tanto o rock quanto no cotidiano dos jovens, sem perder a visceralidade e a simplicidade musical. Um de seus grandes discípulos chama-se Stephen Patrick Morrsisey que, solo ou com os Smiths, perpetrou o estilo rebuscado de Davies nas paradas das décadas de 80 e 90.

Por sinal, a lista dos astros do rock que muito devem aos Kinks é bem extensa. David Bowie e Boy George beberam na fonte de muitas das letras de natureza homoerótica escritas por Ray. Ícones do punk/new wave/pós-punk como Pretenders, Jam, Stranglers e Fall regravaram faixas dos Kinks para fazer deslanchar a carreira ou dar a ela um novo sopro criativo. Já o Blur nunca se preocupou em esconder que várias faixas de álbuns como Modern Life Is Rubbish e Parklife foram literalmente decalcadas das bem-humoradas crônicas sociais dos irmãos Davies (o mano mais novo Dave também se aventurou a compor para a banda a partir de 1967). E outros nomes do britpop ninetie (Suede, Verve, Oasis, Supergrass) também acabaram por resvalar nos Kinks em algum momento de suas carreiras.

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