Justiça

Amanda chega em cima da hora. Preocupada. Precisa da presença. Cem por cento de presença no Escritório Modelo. Já faltou uma vez, noivado da irmã em Campo Mourão. Conversou com a Professora. Tudo bem. A chamada é no começo. Não pode reprovar por falta. Chega e logo ocupa seu lugar. Cumprimenta os colegas. Oi, Oi, pessoal. André responde: Hoje tá cheio, quarta feira é assim sempre. Tenho uns oito para atender. Boa sorte! Amanda cumprimenta a secretária, a Carol, que pega a ficha do seu primeiro cliente. Ernesto, diz no papel. Desempregado. Fora o nome, todos os demais espaços da ficha em branco. Traz junto três crianças. Uma menininha loira, novinha, dois anos. A menininha já no colo da Carol. Dois outros guris. Oito e dez anos parecem ter. Chama Seu Ernesto. Amanda gosta de Trabalhar no Escritório Modelo. Acha que deve. A justiça que aprende na faculdade passa longe daquilo que ela vê na Rua. Daquilo que ela aprende ali. Dos problemas dos seus clientes do Escritório Modelo.

Sente, sente, Seu Ernesto. Pode, pode vir com as crianças, sim. A pequeninha não quer entrar? Deixe, a Carol fica com ela. Linda ela, com’é o nome? Jéssica. Ah, Diéssica, sei. Deixe ela com a Carol. Obrigado Carol. Eu sou a Amanda. Sou estudante de Direito. A Senhora é Advogada? Não precisa chamar de senhora. O escritório, quem cuida é a Faculdade. Um convênio. Me conte, como posso ajudar? Seu Ernesto senta na ponta da cadeira. Os dois meninos continuam de pé. O menor, o de oito anos, espiando o computador. Curioso, achando graça no descanso de tela. O maior, a mão na boca, olhando para baixo. Seu Ernesto usa uma calça listrada de azul. Apertada. Camisa amarela, manchada de tinta. No bolso da camisa, uma caneta pendurada no bolso. Tira o boné. Amassa o boné na mão, esconde, mão no cabelo. Cabelo passado da hora de cortar. Amanda repara os dedos amarelos, as unhas amarelas, encardidas. Lembra que tem que fazer as unhas para o casamento da irmã. O casamento é no sábado, já, não teve tempo ainda. Estágio, faculdade, esse Escritório Modelo, visitas Orientadas. Monografia. Seu Ernesto olha para baixo, olha para os filhos, o menor de olho na tela do computador, o maior com a mão na boca, olhar perdido. Não responde. Não fala nada. Amanda insiste: Então, Seu Ernesto, como posso te ajudar? Pois Doutora, queria ver se a senhora pode me dar aí uma forcinha. Não precisa chamar de Doutora. Como posso te ajudar? Então, eu estou com as crianças aí, né, sem emprego, então vim aqui, para entrar com um processo. Amanda tenta adivinhar. Chuta: Pedido de pensão? Ernesto não entende. Olha Amanda. Pensão Alimentícia. A Mãe das crianças trabalha, tem dinheiro, não está ajudando? Não doutora, a Mãe morreu coitada, deu uma crise, fui no posto, lá disseram que não era nada, era cólica, deram um buscopã. Ela foi ficando ruim, saí, levei pro Nossa Senhora, não tinha SUS, morreu no caminho. O médico lá das Clínicas disse o que tinha sido. Tenho o atestado de óbito. Ernesto tira do bolso o papel amarelado, passa para Amanda. Amanda estica o papel, coloca na sua frente, junto com a ficha. Os dois guris de pé. Olhando sério agora o papel da morte da Mãe. Amanda finge ler o atestado. Uma cara séria de advogada. Continua esperando.

Um dos meninos, o maior, o que olhava perdido começa a balbuciar. Gemer. Uma criança com necessidades especiais. Pergunta extra juridicamente. Pergunta para ajudar, por que para ajudar, já aprendeu, justiça só não basta: Seu Ernesto, seu filho, o maior, estuda em escola especial? Já foi pra escola? Que jeito, Doutora, o piá, me disseram, é surdo, causa da meningite que teve, era pequeno. Pegô na creche. Ficô internado, sarou, mas tá surdo. A Doutora Médica diz que a cabeça é boa, mas tem que estudar em escola de surdo. O Senhor o matriculou? Que jeito? Não tem vaga. Até conseguiram a vaga, a professora gente fina, gente fina mesmo. Não tenho como levar, pego cedo no serviço. O jeito seria o menor levar junto, mas ele perde a hora da escola. Consegui vaga numa escola longe pro menor. Passa por baixo da catraca, o cobrador deixa, pedi para ele. O maior e a menor ficam em casa. A vizinha dá uma olhada. Não fica lá, vai lá ver se ta tudo bem. Às vezes. Fico no preocupado. Queria ver se a Senhora podia me ajudar. Pra conseguir vaga na creche? Ia ser bom, até, mas eu não posso largar o serviço, aí, para pegar a menor. A menininha vem da recepção rindo, na mão um origami cor de rosa. Um presente da Carol. Pula no colo de Ernesto. Seu Ernesto, Senhor trabalha? Pensei que tava sem emprego… Trabalha com quê?

Tô numa empresa, lá perto de casa. Uns serviço, as veis. O senhor é registrado? Não, peguei faz três meses, experiência, ainda. Não sei se vai dar. O gerente diz que a empresa ta mandando o pessoal embora. Depois de velho é difícil conseguir emprego, viu? Senhor tem quanto? Quarenta. Amanda achava muito mais. O tempo passa mais rápido para essa gente sofrida, filosofa. Parece que até o tempo funciona contra. O Pai de Amanda tem cinqüenta, parece bem menos. Anda preocupado. Tem tido umas dores no peito. Stress, disse. O trabalho, a crise…

O maior dos guris agitado. Balbucia alto. Sem parar. O menor desvia o olhar do computador. Segura a mão do irmão. O maior acalma. Seu Ernesto fala: O maior é o Charles. O menor é o Divonei. E tem a Diéssica. A menorzinha sorri ao escutar seu nome. Que graça, diz Amanda. A amiga de Amanda tem uma filhinha de dois anos também. Amanda adora crianças. Um monte de gente ainda para atender. Então Seu Ernesto, no que eu posso te ajudar? Pois eu tava pensando assim, em falar com a Senhora, para ver, lá, meus Direito, que q’eu tenho, assim, pra receber, né? Receber assistência? Não, é que nóis escuta na televisão dos direitos, então eu vim ver se dava para receber alguma coisa, para dar pras crianças, no fim ajuda, né, um pouco. Amanda olha a carteira, olha o atestado de óbito, puxa o código civil, folheia, franse a testa, lê um artigo enquanto pensa, pensa enquanto finge ler mais coisa, olha para o atestado, olha as três crianças, olha o senhor viúvo e quase sem emprego sentado, sorrindo simpático na sua frente, olha o menino surdo gemendo, olha o Código, olha para dentro da consciência. Olha para frente. Séria, bem séria, diz: Seu Ernesto, nós vamos estudar o seu caso e ver o que dá para fazer, ta bom? Telefone? Um para contato, então. Eu ligo quando tiver uma resposta, se der para fazer alguma coisa eu ligo. Vou estudar e ligo pro senhor.

Seu Ernesto levanta, ainda sorrindo, sorrindo mais ainda, estica as duas mãos, obrigado mesmo Doutora, obrigado mesmo pela força, heim? Diéssica, dê tchau pra tia. Tchau pra Doutora, Divonei. O Charles não sabe dar tchau. Continua olhando para baixo com o olhar perdido. Amanda acompanha a família até a porta. Até mais. Eu ligo, qualquer coisa. Entra novamente no escritório. Carol entrega mais uma ficha. Dona Carmo, pode entrar. Entre. Sente. Então, como posso te ajudar? .

Aristides Athayde

é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce
aristides@aristidesathayde.com.br

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