José Mojica Marins nasceu em 1936 numa fazenda em São Paulo. Era filho de espanhóis artistas de circo e fez de tudo no cinema, de faroeste nacional a pornochanchada. A convivência com o cinema começou cedo com o pai que trabalhou em casa de projeção em que depois virou gerente. Mojica leu gibi e viu filmes até enfarar. E decidiu ficar no ramo quando crescer. O primeiro filme que dirigiu foi A Mágica do Mágico, em 1945. O segundo foi Beijos a Granel. Como ator, entrou em 1960 com Éramos Irmãos. O segundo veio seis anos depois: O Diabo de Vila Velha, filmado em Ponta Grossa.
Mojica, entretanto, ficou famoso no gênero horror. Um segmento que vislumbrou em 1948 quando dirigiu A Voz do Coveiro. Mas ele entrou de sola mesmo com um filme de 1963: À Meia-Noite Levarei Sua Alma. Foi aí que apareceu pela primeira vez o Zé do Caixão, personagem tão emblemático que Mojica passou a ser conhecido daí para frente com este nome, que virou uma grife tão magnética que até um automóvel Volkswagen fabricado nos anos 60 levou a alcunha. Diziam que o fusca quadrado parecia um carro funerário.
O personagem, num processo de canibalismo, devorou o autor. Zé do Caixão era mais repulsivo que assustador – as unhas longas e verdadeiras sugeriam dúvidas ingênuas sobre higiene pessoal, como faria para se coçar, se limpar ou cutucar o nariz. Em São Paulo visitava redações à caráter, provocando curiosidade: aquilo era real? Era. As unhas longas eram um obstáculo para coisas triviais como cumprimentar as pessoas, que não faziam questão de apertar mãos cheias de unhas longas de um sujeito com aparência de um coveiro de cidade do interior indo para um baile de fantasia.
A primeira impressão era a de que Mojica incorporou Zé do Caixão e ficou maluco. Mas ele sabia o que fazia. Confundia criador e personagem amalgamando uma lenda. O personagem é um agente funerário cruel e sádico, com mania de conquistar mulheres, em busca da mulher ideal. O visual gótico, capa e cartola, inspirado no Drácula de Boris Karloff e Christopher Lee, a quem Mojica num festival de filme fantástico na Espanha convidou para trabalhar no Brasil. Algo na linha Drácula versus Zé do Caixão. Lee discretamente pulou fora.
Até o nome inteiro de Zé do Caixão é simbiose entre macabro e cômico: Josefel Zanatas. José mais Fel por ser amargo e quanto ao sobrenome, tentem lê-lo de trás para frente. O personagem é obsessivo. Quer perpetuar sua dinastia com um filho superior. Que só pode sair das entranhas de uma mulher perfeita. A mulher perfeita pode até ser uma gostosa, mas no caso deve ser intelectualmente superior às demais – se espiritualmente também for, melhor ainda. Na busca da dona de sua vida, Zé do Caixão faz o diabo, mata, tortura, joga aranhas nas pessoas, bota um batalhão de mulheres numa cova cheia de cobras e pratica outras sandices.
O personagem Zé do Caixão, na mitologia Mojicana, viveu milhões de anos no planeta – não é só Lovecraft que acreditava nisso – e se transformou em luz, para depois voltar. E desta vez para atazanar as pequenas comunas do interior do Brasil. A ideia de criá-lo, como acontecia com Lovecraft, surgiu em 11 de outubro de 1963. Nesta noite, Mojica foi atormentado por um pesadelo em que um vulto o arrastava até o seu próprio túmulo, dele, não do vulto. Se este pesadelo é verdade ou lorota para reforçar a lenda, só Deus sabe. Mas foi assim que nasceu este mix de maluco, sem vergonha, tarado e sádico. Mojica diz que Zé do Caixão é niilista e se considera superior às outras pessoas.
Que é descrente, obsessivo, cruel e sádico. Claro que com estas características tem tudo para ser odiado. Zé do Caixão, o personagem, não acredita em Deus ou no diabo. Ao contrário de Glauber Rocha, o primeiro a reconhecer, para espanto de seus pares, a genialidade de Zé do Caixão, o cineasta. Que foi considerado pelo baiano um dos principais criadores marginais do Brasil. Zé do Caixão, o cineasta, não brincava em serviço e não tinha medo de cara feia. Fazia qualquer tipo de filme, dirigindo ou atuando. De horror a comédia, de faroeste a sacanagem. Como diretor, fez 39 filmes, com títulos variados como Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, Delírios de um Anormal, Como Consolar uma Viúva e A Mulher que Põe a Pomba no Ar. E como ator, entrou em 24 também com títulos variados: A Marca do Terror, O Vampiro da Cinemateca, O Gato de Botas Extraterrestres, A Dama de Paus e O Filho do Sexo Explícito. Era e ainda é um sujeito muito versátil.
Hoje em dia ficou chique falar bem de Zé do Caixão. No começo de carreira ele levava pancada que nem vaca velha, usando expressão de Felipe Scolari. Vez e outra aparecia nas primeiras páginas dos jornais sensacionalistas como Notícias Populares por conta de alguma maracutaia ou suas famosas seleções de atrizes, durante as quais testava se as candidatas tinham nervos de aço. Ele pedia para elas tirarem a roupa, ficarem de calcinha e sutiã e que deitassem numa mesa. Depois espalhava tarântulas para passear nos corpos alvos das donas, com aquelas pequenas patas peludas. As talentosas suavam e resistiam, as covardes saiam correndo do galpão quase nuas, assustando as pobres tarântulas e provocando um rebuliço na calçada. Aí baixava polícia no galpão do Zé do Caixão.
Com um portfólio deste e sem condições de se aproximar dos cofres da Embrafilme, exclusivos de cineastas da Zona Sul do Rio de Janeiro, que compravam apartamentos na Vieira Souto e jogavam no circuito filmes ruins que chamavam de herméticos, Zé do Caixão tinha tudo para ser um Zé Ninguém. E seria, embora Glauber achasse o contrário, não ocorresse com ele o fenômeno que aconteceu a Helena Meirelles, uma violeira do Mato Grosso descoberta por um estudioso americano que percorria o interior do Brasil.
Helena acabou guitarra do ano da revista Guitar Player, com voto de Eric Clapton. Zé do Caixão de uma hora para outra virou Coffin Joe. Os seus filmes foram parar nos Estados Unidos e uma pequena legião de admiradores de repente se encantou com Coffin Joe. Numa entrevista que ele deu nos Estados Unidos perguntaram qual o recurso tecnológico que
usou na cena em das aranhas andam no corpo das mulheres e o diretor respondeu que não teve tecnologia, foi tudo real. Mais punk impossível. Os fãs americanos ficaram mais fãs ainda. Mas Zé do Caixão já despertara curiosidade na Europa. Os críticos ficaram assombrados e deram prêmios no Festival de Cine Fantástico y de Terror Sitges (Espanha, 1973), Prêmio L’Ecran Fantastique (1974, em originalidade) e Prêmio Tiers Monde da imprensa mundial, na III Convention du Cinéma Fantastique (França, 1974).
Com seus 74 anos, Zé ainda está na ativa. No ano passado atuou em A Cruz e o Pentagrama e em 2008 dirigiu Encarnação do Demônio. Ainda assim, continua um outsider da cultura brasileira – a elite não gosta, mas tem de engolir, como o Lula na política. E não o único. Num país que cultiva a exclusão como prática de convivência social, o negócio é forçar passagem pelo acostamento.
E alguns conseguem. Mazzaropi, David Cardoso e outros aos trancos e barrancos criaram seus produtos culturais. Brasília teve um caso famoso, o do cineasta bombeiro Afonso Brazza que morreu em 2003 aos 48 anos e se tornou celebridade ao produzir fitas com baixos orçamentos e fazer dos defeitos a principal atração. É o cinema trash, cujos fundamentos foram definidos por José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Ou, para ficar mais chique, Coffin Joe.


