Histórias da carochinha à moda underground

Uma das muitas bobagens que se dizia sobre as histórias-em-quadrinhos, quando eu era menino e tomei gosto pela coisa, era de que os gibis eram altamente perniciosos à educação das crianças, interferiam no desenvolvimento cultural da garotada e afastavam os petizes da verdadeira literatura. Asneiras tão grandes quanto a crendice, da mesma época, de que manga com leite era morte certa. Sempre li quadrinhos com paixão e fervor e não posso me considerar, hoje, propriamente um imbecil.

Além do que, foi através de Edição Maravilhosa, Álbum Gigante, Epopéia, Quem Foi? e Misterinho, de Adolfo Aizen, que conheci José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Machado de Assis, Bernardo Guimarães, Ribeiro Couto, José Lins do Rêgo, Gilberto Freire, Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Júlio Verne, Alexandre Dumas, Mark Twain, Charles Dickens, Victor Hugo, Sir Walter Scott, Daniel Defoe, Emily Bronte, Robert Louis Stevenson, Edgar Rice Burroughs, Conan Doyle, Edgar Allan Poe, Lewis Carroll, Jack London, Camões, Dostoievski, Homero e Shakespeare e tomei conhecimento de personagens como Marco Pólo, Guilherme Tell, Miguel Strogoff, Júlio César, Ivanhoé, Sherlock Holmes, Os Três Mosqueteiros, Robin Hood, Robinson Crusoé, Mowgli, Tom Sawyer, Scaramouche, Tarzan, Corcunda de Notre Dame, Frankenstein, Cyrano de Bergerac, Pimpinela Escarlate, Charlie Chan e Zumbi dos Palmares, entre outros. Com uma particularidade: a adaptação sempre levou-me à versão original, como aconselhava o editor.

Uma bem cuidada edição especial de Cinemin, também da velha EBAL, apresentou-me a Hans Chistian Andersen e à magia do “Soldadinho de Chumbo”, de “João e Maria”, de “O Rei” que “Estava Nu” e de “O Patinho” Feio.

Hoje, felizmente, não existe mais aquele velho preconceito, e livros e quadrinhos caminham juntos, em harmonia, como formas importantes e paralelas de cultura popular que, no mais das vezes, se auxiliam e completam. Tanto é que adaptações quadrinizadas de grandes clássicos da literatura universal têm sido oferecidas, volta e meia, ao público por consagrados nomes da ilustração e editoras de prestígio. Foi o que aconteceu, outro dia, com “Dom Quixote de La Mancha”, de Cervantes, assinada por Will Eisner, lançada no Brasil pela Cia. das Letras. Agora, a mesma editora volta à carga com “Little Lit”, de Art Spiegelman e Françoise Mouly.

Do Príncipe Galo à Princesa e a Ervilha

“Little Lit”, que poderia ser traduzido como “Pequena Luz” ou “Pequena Claridade” ou, quem sabe?, “Lamparina”, reúne, em uma bem cuidada edição, algumas das melhores fábulas e contos de fadas em quadrinhos. A “luminosa” idéia partiu de Art Spiegelman, que assina a pintura da capa e a história inicial, “Príncipe Galo”, baseada em uma parábola hassídica sobre normalidade, loucura e diferença. Ele é o ganhador do Prêmio Pulitzer por “Maus” (aqui publicada pela Editora Brasiliense), que conta a história de seus próprios pais no Holocausto, e recentemente foi homenageado pelo Museum of Comic and Cartoon Arte, de Nova York. Nascido na Suécia, Art mora atualmente em Nova York, com a mulher, a arquiteta francesa Françoise Mouly, co-autora da publicação. Françoise é editora de arte da revista americana The New Yorker.

A idéia foi reunir renomados artistas do pincel e alguns cartunistas inovadores, e encomendar-lhes adaptações criativas e bem-humoradas em quadrinhos de fábulas e contos de fadas. O resultado foi um mundo de descobertas, “das mais profundas às mais tolas”, como registra a própria contracapa da edição.

Entre os nomes consagrados, figuram William Joyce, autor de diversos livros infantis e vencedor do Prêmio Emmy, dono de um estilo nonsense, como a história que assina: “Humpty em Apuros”; Daniel Clowes, autor do gibi americano Eightball, cuja versão de “A Bela Adormecida” procura seguir o original do Século XVII, de Charles Perrault; o veterano Walt Kelly, criador da aplaudida tira política “Pogo” e que foi um dos principais animadores dos Estúdios de Walt Disney, com “O Homem-Biscoito”, datada em 1943; David Macaulay, premiado autor de livros ilustrados, que faz a sua estréia nos quadrinhos com uma versão pessoal de “João e o Pé de Feijão”; e David Mazzucchelli, muito conhecido dos leitores de quadrinhos por seu trabalho com os personagens da DC Comics, entre os quais Batman e Superman. David passou uma temporada no Japão, onde certamente inspirou-se para criar “O Pescador e a Princesa do Mar”.

As demais atrações são: “A Árvore sem Folhas” (fábula holandesa), de Joost Swarte; “Um Cavaleiro Memorável”, de Ever Meulen; “Os Dois Corcundas”, de Mattotti e Kramski; “A Filha do Padeiro”, de Harry Bliss; “A Abóbora Encantada”, de Claude Ponti; “O Cavalo Faminto”, de Kaz; e “A Princesa e a Ervilha”, de Barbara McClintock.

Ao todo, são 17 artistas, cada um dono de um estilo diferente, que conferiram às histórias e lendas uma linguagem gráfica própria, chegando, até, a reinterpretar antigos clássicos do conto infantil, como ocorre em “João e o Pé de Feijão” e “A Bela Adormecida”. Há também, como bem assinala Sidney Gusman, do site Universo HQ, situações “exemplares”, como quando, em “A Filha do Padeiro”, uma garota se transforma em coruja ao negar um pedaço de pão a uma pedinte, ou quando, em “O Cavalo Faminto”, um fazendeiro, depois de tanto explorar o seu cavalo, acaba convertido, ele próprio, em um corcel.

“Little Lit” tem 64 páginas multicoloridas, tamanho gigante (23,5 x 33 cm), custa R$ 39 e oferece ainda, como brinde, dois jogos de tabuleiro para destacar, montar e brincar: “Estrada Maluca dos Contos de Fadas” e “Era uma Vez”. A tradução é de Antonio de Macedo Soares para a Cia. das Letras. Serve como presente neste Dia das Crianças e está à venda nas boas casas do ramo, como Livraria Saraiva e Itiban Comic Shop.

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