Iniciado na sexta-feira, 7, à noite, o 43º Festival de Gramado – Cinema Brasileiro e Latino teve de tudo no primeiro fim de semana. Homenagens, polêmicas, bons filmes. A polêmica envolveu o que seria o primeiro concorrente brasileiro – Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. O filme foi retirado da competição e passou fora de concurso por conta de uma cláusula estranha do regulamento. Que Horas Ela Volta? terá esta semana uma pré-estreia em São Paulo. Não poderia.

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Por outro lado, o regulamento aceita que muitos filmes já tenham sido exibidos, e até premiados, em festivais brasileiros. Metade da seleção organizada por Rubens Ewald Filho, Marcos Cantuária e Eva Piworwarski integrou a Première Brasil do Festival do Rio, no ano passado. Isso pode.

Que Horas Ela Volta? estreia dia 27 nos cinemas brasileiros. No mesmo dia, vai estrear nos EUA. É um filme com potencial para Oscar – Regina Casé já foi melhor atriz no Sundance Festival. O filme de Anna Muylaert dialoga com dois outros que estão entre os melhores produzidos no País, nos últimos anos – Casagrande, de Fellipe Barbosa, e O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho. Segundo a diretora, é o Casagrande visto da cozinha, enquanto o longa de Fellipe Barbosa encara as tensões sociais no Brasil de 2015 do ângulo da sala.

A primeira homenagem de Gramado foi para o ator, diretor, roteirista e produtor Daniel Filho, que recebeu no sábado o Prêmio Cidade de Gramado. Daniel faz filmes populares que nem sempre, ou raramente, agradam aos críticos. Seu cinema não tem a cara do circuito dos festivais, mas seria absurdo negar sua importância para o cinema brasileiro. Ele lembrou a célebre cena do nu frontal de Norma Bengell em Os Cafajestes, de Ruy Guerra – dirigia o jipe que descreve movimentos circulares em volta da atriz. Passaram-se mais de 50 anos (o filme é de 1962) e Daniel volta a se associar a Ruy Guerra no novo filme do diretor, Quase Memória.

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“Não preparei discurso para esta noite, porque prefiro deixar me levar pela emoção”, disse no palco do Palácio dos Festivais. “O que penso agora é que devo agradecer muito aos meus colegas, com quem aprendi muito. Nesse momento, lembro de todos os que passaram pelos meus 62 anos de profissão” – Daniel estreou no começo dos anos 1950. Contracenou com figuras lendárias como Oscarito e Zé Trindade. Seus filmes como diretor fizeram mais de 40 milhões de espectadores. É o sr. Bilheteria do cinema brasileiro.

Na ausência de Que Horas Ela Volta?, coube a Luiz Carlos Lacerda, com Introdução à Música do Sangue, iniciar a competição brasileira. O filme marca o novo tributo do diretor ao escritor mineiro Lúcio Cardoso, de quem foi amigo. A história foi cedida a Lacerda, ou Bigode, como é conhecido, pelo autor, mas ele a perdeu e só recuperou recentemente. O roteiro do próprio Lacerda filtra Lúcio Cardoso por Humberto Mauro. A filmagem foi feita nas proximidades de Cataguases, onde Mauro desenvolveu um ciclo importantíssimo do cinema brasileiro.

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Introdução tem algumas (poucas) qualidades. A opção pela iluminação à luz de velas é atraente, embora nem sempre lograda. O elenco jovem é ótimo – Greta Antoine e Armando Babaioff. É a hora do garoto, que estrela o novo longa de Roberto Gervitz, selecionado para os festivais de Brasília e Montreal. A história passa-se no meio rural. Tem algo de filmes como Inocência, que Walter Lima Junior dedicou a Humberto Mauro.

Um casal de velhos, uma garota que provoca o desejo do homem maduro e também o de um jovem agrônomo que trabalha no local. Bete Mendes e Nei Matogrosso, que fazem os idosos, possuem carreiras expressivas. Criam os talvez mais constrangedores personagens de suas carreiras. Ele revira os olhos, enlouquecendo de desejo. Parece um zumbi.

Face a essas atribulações brasileiras na seleção de Gramado 2015, os latinos avançaram olimpicamente. Do México veio En la Estancia, filme estranho sobre pai e filho numa cidade fantasma e o documentarista que faz um filme sobre eles. Há uma ruptura de tempo, passam-se os anos, volta o documentarista, mas agora as ligações são outras. O diretor Carlos Armella é cria de Alejandro González-Iñárritu, que produziu o filme, mas nada – tempo, espaço, personagens – vincula En la Estancia ao diretor de Birdman.

O segundo longa latino foi melhor ainda. Zanahoria/Cenoura, de Enrique Buchichio (re)abre a vertente do thriller político no Cone Sul. O filme baseia-se numa tal ‘operação cenoura’, desencadeada no Uruguai, há pouco mais de dez anos, no quadro eleitoral que apontava para a vitória da esquerda nas eleições presidenciais. O complexo político/militar resolveu então desenterrar vítimas da ditadura. O objetivo era eliminar provas, face a uma eventual vitória da Frente Ampla de esquerda, que poderia querer a investigação de antigos crimes.

Nesse quadro, dois jornalistas são enredados por um homem do esquema, misto de trapaceiro e mitômano, que lhes promete provas, mas não as fornece. O diretor Buchichio bebeu na fonte de Costa-Gavras (Z) e Alan J. Pakula (Todos os Homens do Presidente). O thriller vira anti-thriller. Não surgem as provas, mas só as evidências nos revelam tudo sobre os personagens e o clima político. Cenoura também é sobre ética jornalística, um tema mais que nunca atual no Brasil. E os atores – Cesar Troncoso, Abel Tripaldi e o jovem Martin Rodriguez – são excepcionais. Vai haver Kikito por aqui. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.