‘Gotas D’água sobre Pedras Escaldantes’ ganha montagem

Quem desce as escadas do Instituto Cultural Capobianco (ICC), no centro de São Paulo, em direção à sua sala subterrânea, tem uma sensação de imersão literal no ambiente. A partir deste sábado, 05, este efeito será ainda mais intenso. Com organização tradicional com o público sentado de frente para o cenário (palco italiano) e capacidade reduzida para 35 lugares, o espectador entra na casa de Leopold, um dos protagonistas de Gotas d’Água sobre Pedras Escaldantes.

A peça do dramaturgo alemão Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) ganha montagem da companhia Empório de Teatro Sortido com direção do prodígio Rafael Gomes – ele tem no currículo, entre outros feitos, o espetáculo Música para Cortar os Pulsos, que ganhou o Prêmio APCA de melhor peça jovem, e o viralizado vídeo Tapa na Pantera, com a participação da atriz Maria Alice Vergueiro.

Gotas d’Água, que teve, em 2000, versão para cinema do francês François Ozon, é uma peça sobre relações humanas em quatro atos. No primeiro, Leopold, um homem de 50 anos interpretado por Luciano Chirolli, atrai Franz (Felipe Aidar), de 20 anos recém-feitos, até sua casa. Com uma malícia latente, ele dá início a um jogo de sedução e conquista o garoto que, ainda cru, embarca na aventura sem muitas reflexões. Mas já no ato seguinte, Leonard passa a ser ranzinza, tratando Franz com certo desprezo e mostrando quem realmente é: um homem manipulador, com prazer em tornar dependentes dele as pessoas mais fracas e vulneráveis.

“Este texto não é uma receita pronta”, diz Gomes. “É uma mistura em ebulição”, afirma, lembrando que esta é a primeira peça de Fassbinder, que a concebeu entre 1965 e 1966, quando tinha apenas 20 anos. “Apesar de a obra ser menos bem acabada em relação às suas outras, há um jorro de vida muito estimulante.”

Complementam o elenco as atrizes Gilda Nomacce e Nana Yazbek, que interpretam, respectivamente, Vera e Ana. A entrada das personagens em cena gera uma virada. Morando com Leopold e sendo submisso a ele (com alguns momentos de ira e revolta sem sucesso), Franz reencontra a ex-namorada Ana, que, ainda apaixonada por ele, tenta convencê-lo a reatar o relacionamento e deixar a casa de Leopold. Só que a jovem também cai na lábia do cinquentão e cria uma admiração por ele.

Vera, caso antigo de Leopold, funciona como uma previsão do que Franz pode se tornar, caso insista na doentia relação. Inicialmente enciumada do garoto, ela cria uma empatia por vê-lo caindo na mesma armadilha da qual foi vítima. O poder de Leonard é tão forte que, mesmo com o histórico de egoísmo exacerbado e pressão psicológica, ele mantém a atenção dos três outros personagens sempre voltadas para ele. Na montagem, isso fica perceptível em nuances, como quando ele senta com pernas bem abertas em um sofá de dois lugares, fazendo com que Vera e Franz se espremam em uma disputa para ficar ao seu lado.

“Me identifico com Leonard até o primeiro ato”, diz Chirolli. “Tenho a mesma idade dele, gosto de jogos e fantasias e, às vezes, não meço consequências em relação a elas. Mas é impossível não me importar com o grau de envolvimento do outro.”

Diferenças

Para manter a originalidade da montagem, Gomes, que viu o filme de Ozon em 2001, preferiu que o elenco não assistisse ao longa durante o processo de criação, que começou em abril. O filme só foi visto há cerca de dez dias, para que eles fizessem uma contraposição das obras, se alimentando de Ozon sem a “angústia da influência”, como diz Gomes.

É claro que o que se vê no palco remete ao que se viu na tela, mas há sensíveis diferenças. Enquanto Ozon faz uso de algumas cenas não explícitas de sexo – como a primeira transa de Franz e Leopold e o início de um ménage à trois deste com as duas mulheres -, Gomes mostra outras saídas, como uma breve dança de salão ou uma sugestiva ida ao quarto que, em um cenário em perspectiva, é visto apenas parcialmente por ficar atrás da sala. “É a velha história de que a sugestão é muito mais interessante do que a exposição”, diz o diretor, acrescentando que, no texto, Fassbinder não dá nenhuma indicação de como a direção deve proceder – deixando tudo a cargo do encanador.

A chegada de Vera na história é outra diferença notável. Enquanto no filme ela bate na porta do apartamento em dois momentos e acaba entrando apenas em uma terceira vez, na peça é Leopold quem vai buscá-la. Para Gomes, Ozon fez o filme de maneira segura. “O texto puxa a todo momento para o melodramático, mas Ozon resolve no estilo. A maneira com que ele compõe os quadros, faz os cortes, como ele estetiza tudo. Enquanto ele resolve no artifício, a gente tenta resolver na carne”, compara, sem, no entanto, criticá-lo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Voltar ao topo