‘Fumaça da Terra’ revela paraísos perdidos e recuperados

Há 20 anos sintonizada ao debate ambiental no Brasil, a artista plástica Denise Milan acabou criando uma relação muito particular com a natureza ameaçada. Em vez de denunciar a destruição, o que já seria bom e suficiente, ela caminha por territórios devastados ou em vias disso, tentando encontrar enclaves da vida que se renova. Acreditando piamente na fertilidade do planeta, faz a fusão do que apreende com o olhar com o que libera pela imaginação, guiada por sua sensibilidade. O resultado dessa longa caminhada pode ser conferido a partir desta quarta-feira, 26, até 19 de abril na Galeria Virgílio, com a abertura de Fumaça da Terra, exposição individual da artista.

Paulistana de nascimento, formada em economia e há muito dedicada às artes plásticas, Denise já é um nome conhecido no circuito por suas esculturas, colagens e obras públicas instaladas no Brasil e no exterior. Acrescente-se a isso trabalhos com arte-educação, outro interesse permanente da artista. “E tudo está integrado. Não me preocupo em dividir o que faço por fases ou técnicas, porque trabalho dentro de um mesmo processo”, comenta sobre si mesma. No caso de Fumaça da Terra, o processo criativo teve início quando começou a fotografar quase compulsivamente a Mata Atlântica, parando para ouvir histórias de gente simples e beber da cultura caiçara.

Foi assim na pequena Cairuçu, região de Paraty (RJ), onde sua experiência pessoal com a comunidade local deu origem a um vídeo e um livro editados em 2006. Neles, a voz e o brilho ficam por conta do testemunho da caiçara Ruth Geni Donário de Araújo, mãe de 17 filhos: “Nasci na Praia Vermelha. Era mato, praia e cachoeira”.

Aos poucos, as andanças de Denise foram se ampliando até alcançar o sertão baiano, também intensamente fotografado. E, assim, esse acervo de imagens começou mansamente a dar forma a novas composições.

Mas o trabalho só ganhou dimensão ao ser descoberto pelo curador e crítico de arte americano Simon Watson. “Minha primeira visita ao studio de Denise Milan em São Paulo foi um tanto formal, só para ver suas obras e olhar os catálogos de exposições passadas. Num dos encontros seguintes é que pude desenterrar um tesouro: caixas cheias de fotografias e pequenas colagens que ela vinha fazendo há mais de 15 anos”, relembra Watson, que divide a curadoria da nova exposição com Isabel Pinheiro. Era, enfim, o material das andanças. “Fiquei extasiado com aquela obra esplendorosa, guardada com tanta timidez.” Com a curadoria do americano, Denise pôs-se a trabalhar sobre o mesmo acervo, produzindo colagens em grandes formatos, vistas pela primeira vez em 2012, na mostra Mist of the Earth, no Centro Cultural de Chicago, EUA.

A mostra inaugurada nesta quarta-feira, 26, é outro desdobramento da relação curador-artista. Agora os formatos diminuem (30X20, 40X60, 90X70), “como se cada obra pudesse ser admirada através do vidro de uma janela”, explica Watson. Divididas em três temas – Paraíso, Paraíso Perdido e Paraíso Reconquistado – são fotocolagens sobre imagens saturadas de cor, parte delas recebendo aplicações de folhas de ouro e quase todas com fusão final em metacrilato.

Em Paraíso, a artista cria puzzles feitos de gente e mata, em intensa relação poética: o corpo da índia que amamenta se funde às flores do urucum. Ou, paisagens rasgadas da da floresta dão origem a uma mandala da vida. Já em Paraíso Perdido, Denise mostra sua relação visceral com o sertão baiano, onde captura paisagens silenciosas sob sol a pino, em fotos que serão novamente rasgadas para constituir novas paisagens. Nesses trabalhos, folhas de ouro são aplicadas aqui e ali, contornando formas da natureza, com forte apelo estético e simbólico – é o ouro da cobiça, mas também o ouro da matéria que se renova. E, por fim, em Paraíso Reconquistado, Denise vai ao ventre da terra com imagens de pedras, recortadas e reorganizadas em mandalas ou flores exuberantes. A pesquisa com o mundo mineral, vale lembrar, alimenta sua produção escultórica, já bastante reconhecida.

O poeta Haroldo de Campos (1929-2003), com quem Denise Milan trabalhou na multimídia Ópera das Pedras, deixou uma explicação consistente para todo esse trabalho. Dizia que a arte de sua parceira consiste em desmobilizar estruturas do seu cenário natural, “intervindo de maneira criativa para acrescer aquele dado da natureza, que já é esplêndido em si mesmo”. Manuela Amena, curadora sênior do Museu do Prado, na Espanha, que também acompanha o trabalho da artista, aponta outro aspecto. Afirma que Denise tem conseguido transmitir em suas colagens, particularmente as embebidas da quietude da mata e do sertão, a dimensão pictórica da natureza-morta. E vai além: “A vibração de uma pequenina folha, isoladamente, parece representar o infinito do tempo ao ser tocada por uma brisa inatingível, que até parece chegar de outra dimensão”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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