Sobre Nava, o autor aborda uma questão da imprensa brasileira que era (e talvez seja) o espírito de corpo quando o assunto é amigos ou conhecidos. A questão da homossexualidade de Nava omitida nos textos sobre a sua morte permaneceu uma dúvida cruel na cabeça do leitor: ele era ou não era? Não se trata de curiosidade mórbida. A revelação era peça chave na morte do escritor, ameaçado por um garoto de programa. E ninguém tocou no assunto para não macular a memória do amado defunto. Uma revelação tardia, mas bem vinda, porque pouco ou quase nada se falou no assunto posteriormente, ainda que hoje não seja tabu.
Sobre Fonseca, há o relato do dia em que o escritor, conhecido por seu mutismo, abriu a boca numa entrevista e noutra assumiu a condição de entrevistador e colocou Fidel Castro na parede. O livro é repleto de coisas do gênero, que fazem o leitor ir sem pressa até o fim, ainda porque não é necessário devorar tudo de uma vez. Cada capítulo é uma história que se encerra em si mesma.
Mas quem pensa que o autor fala apenas dos outros, engana-se. Falar dos outros foi artifício que achou para falar de sua trajetória, sem o prepotente, ?eu vi, eu fiz, eu fui e aconteci?. Não é do jeito dele. Zuenir vai contando como quem não quer nada a história de um sujeito que trabalhava no arquivo de um jornal carioca e ascendeu a categoria de jornalista no dia em que Albert Camus morreu e o editor precisou de alguém para um obituário decente. Pediram um artigo ao moço do arquivo, ele compareceu e não parou mais de escrever. Nas páginas seguintes encontramos o nosso ex-arquivista flanando pela Paris dos melhores dias do pós-guerra e dando um pulo em Saint Tropez para testemunhar o nascimento do biquíni. E por aí vai, com um texto que mais parece uma conversa num fim de tarde em Ipanema ou Leblon (ou qual seja a praia do Zuenir).
Para uma conversa tão boa, surpreende que o livro termine com um doloroso e autodilacerante relato do autor sobre um garoto que testemunhou a morte de Chico Mendes. O garoto por uma destas obras do destino, acabou criado pelo jornalista no Rio de Janeiro, em meio a uma sucessão interminável de alcoolismo, quedas, recomeços, mudanças de cidade e de escolas, esperanças que ainda hoje se alimentam numa cadeia angustiante. Esta é uma narrativa com dúvidas e meas culpas, como uma espécie de autojulgamento. No leitor funciona como um direto no queixo bem no fim da leitura.
Assim, o livro (para ficar num bom e velho clichê) traça um painel da vida brasileira, do final dos anos 50s, até hoje, com passagem pelos tumultuados anos 60s, a atmosfera sufocante dos anos 70s, a morte de Herzog, o fim dos anos duros da ditadura, a morte de Glauber, a redemocratização, o fascínio sobre a esquerda carioca, incluindo as mulheres, naturalmente, dum líder metalúrgico paulista que agredia o vernáculo sem piedade, o recomeço da democracia com indesejável José Sarney, violência no Rio, guerrilheiros posando de bandidos, bandidos posando de guerrilheiros, tudo está lá em doses dietéticas nas páginas do livro de Zuenir.
O livro poderia ter outro nome. Algo como ?A coisa que não deu certo?. Qualquer um menos elegante, porque é o relato de um observador da realidade brasileira sobre as pessoas que sonharam cada uma a sua maneira com um país melhor e se frustraram porque o sonho ainda não deu certo. Pessoalmente gostei dos capítulos sobre Glauber Rocha e Nelson Rodrigues. A revelação da ausência do cineasta na entrevista que deveria conceder em sua consagração em Cannes reforça o caráter surrealista de um cineasta expressionista. Glauber ficou nervoso e teve um desarranjo intestinal. Nelson Pereira dos Santos falou em seu nome.
É também deliciosa a narrativa da rivalidade entre o Nelson Rodrigues e Tristão de Athayde, a origem num prosaico telefonema e o fim patrocinado por Zuenir, num encontro emocionado entre dois velhinhos que tinham uma forma estranha de se entenderem. Enfim, aparentemente não preocupado em escrever outro grande livro 1968, O ano que não terminou, é obrigatório para quem deseja conhecer o período Zuenir atravessou a mesma linha de chegada, desta vez sem pressa e sem o alvoroço de um bólido, como o primeiro livro.
Desta vez, de bicicleta, pedalando. Que devagar se vai longe. A foto na capa do livro em que Zuenir pedala uma bicicleta com Rubem Fonseca na garupa dá o tom. Um livro despreocupado, que acha uma nova maneira de contar uma velha história. A nossa velha e triste história recente.