Flash Gordon: A volta da obra-prima de Alex Raymond

De vez em quando, uma notícia auspiciosa dá uma injeção de ânimo no hoje excessivamente árido mundo dos quadrinhos, dominado por superpoderosos heróis (produzidos em computadores), de muito músculo e quase nenhum miolo na cabeça. A mais recente delas revela que a Opera Graphica Editora, de São Paulo, está preparando, para o final do ano, o retorno de Flash Gordon, obra-prima do mestre Alex Raymond, às livrarias e “comic shops” brasileiros.

Flash Gordon formou com Buck Rogers e Brick Bradford o trio pioneiro da ficção-científica nos gibis, e inaugurou a chamada “idade de ouro” dos quadrinhos. Com uma vantagem fundamental: enquanto Rogers vivia no século XXV e Bradford visitava mais o passado que o futuro, Gordon era um cidadão comum da velha Terra do século XX que, por acaso, virou herói no planeta Mongo, governado pelo ditador Ming. E esse feito se tornaria o marco inicial dos quadrinhos modernos.

O grande visionário

Se hoje sabemos que a Terra é azul é porque – como registrou o jornalista, escritor e quadrinhólogo Sérgio Augusto – Flash Gordon, em 1934, muito antes do russo Gagarin subir ao espaço, nos contou, pelas tiras dominicais de Raymond.

Mas essa, certamente, não foi a única revelação feita pelo extraordinário Alex Raymond, através das aventuras de Flash Gordon. Ele prenunciou, também, o advento da minissaia, da propulsão a jato, dos foguetes interplanetários, da televisão, dos intercomunicadores, do raio laser, dos computadores e das vias expressas elevadas. Fez mais: deu forma aerodinâmica aos aviões a jato, numa época em que existiam apenas modestos bimotores. E embora confessasse um certo desprezo pela verossimilhança científica, foi quem intuiu todo o mecanismo de segurança e conforto dos futuros astronautas. Sérgio Augusto lembra que a Nasa, em um de seus boletins oficiais, reconheceu haver-se inspirado nas histórias de Flash Gordon para resolver determinados problemas de suas espaçonaves.

Além de excelente desenhista, dono de um estilo elegante, mas rico em expressividade, Raymond ampliou o mundo de Júlio Verne e H.G. Hells, antevendo, como poucos artistas de seu tempo, o design do futuro.

De Wall Street a Mongo

Na história das histórias-em-quadrinhos, Alexander Gillespie Raymond ocupa não apenas um, mas vários capítulos especiais. Nasceu em New Rochelle, Nova York, no dia 2 de outubro de 1909 (embora costumasse dizer que foi em 1911). Aos doze anos, perdeu o pai e começou a trabalhar como office-boy em Wall Street. Com o crack da Bolsa, em 1929, foi levado a matricular-se na Grand Central School of Art e conquistou o lugar de assistente de um vizinho e amigo, o desenhista Russ Westover, criador de Tillie the Toiler. Depois, trabalhou algum tempo com os irmãos Young, Chick (em Blondie) e Lyman (Tim Tyler?s Luck).

Nessa ocasião, a distribuidora King Feature Syndicate, integrante do império de William Randolph Hearst (também conhecido como Cidadão Kane), queria uma página dominical para concorrer com Buck Rogers e Tarzan. O jovem Alex, então com 24 anos de idade, inscreveu-se no concurso com dois personagens de uma só vez: Flash Gordon e Jim das Selvas. Venceu a parada. Semanas depois, o mesmo sindicato pediu-lhe para desenhar as aventuras do Agente Secreto X-9, uma nova tira diária, escrita pelo novelista Dashiell Hammett. As três criações foram lançadas em janeiro de 1934, com sucesso imediato.

Um ano depois, o excesso de trabalho levou Alex a deixar X-9, entregando-o a Charles Flanders. Mas, em 1946, quando deixou a Marinha, ele voltou ao tema policial, com Rip Kirby (Nick Holmes, no Brasil), um moderno detetive particular, que vivia em um confortável apartamento, na Manhattan de pós-guerra, cercado de belas mulheres e na companhia do fiel mordomo Desmond (Duarte, entre nós), um ex-marginal regenerado.

“Foi com Rip Kirby que Alex Raymond revelou-se um mestre no branco-e-preto, com o uso de balõezinhos e enquadramentos cinematográficos” – salientou o pesquisador Álvaro de Moya, professor de comunicação social e um apaixonado pelos quadrinhos, autor de HQs e inúmeros livros sobre o assunto.

Dois anos depois de lançado, Flash Gordon foi levado ao cinema pela Universal Filmes, que produziu três seriados em capítulos, os mais caros até então: “Flash Gordon no Planeta Mongo” (1936), “Flash Gordon no Planeta Marte” (1938) e “Flash Gordon Conquistando o Universo” (1940). As séries, estreladas por Larry “Buster” Crabbe (Flash), Jean Rogers (Dale Arden) e Charles Middleton (Ming), com direção de Frederick Stephani, conseguiram captar com surpreendente fidelidade a beleza das tiras de Raymond, sendo considerados, até hoje, clássicos no gênero.

Alex conduziu as páginas dominicais de Flash Gordon até fevereiro de 1944, quando se alistou como fuzileiro naval, participando da campanha do Pacífico. Foi sucedido por Austin Briggs, seu então assistente, que já se encarregava das tiras diárias do herói. Depois de Briggs, vieram Mac Raboy, Dan Barry (irmão de Sy, de The Phanton/O Fantasma), Ric Estrada, Al Williamson e, mais recentemente, Bob Fujitani e Carlos Garzon.

Em 6 de dezembro de 1956, aos 47 anos de idade, rico e no auge da fama, ao experimentar a nova Porsche de um colega e vizinho – Stan Drake, de Juliet Jones (O Coração de Vera Lúcia/Coração de Julieta, no Brasil) -, Alex Raymond sofreu um acidente fatal nas curvas da estrada de Clappboard, próximo a Westport, Connecticut, deixando no mundo dos quadrinhos um vazio até hoje não preenchido.

Flash no Brasil

Flash Gordon chegou ao Brasil pelas mãos do editor Adolfo Aizen, no n.º 3 do Suplemento Infantil, de A Nação, em 28 de março de 1934, ou seja, apenas pouco mais de dois meses depois de sua estréia nos EUA. Posteriormente, em 1939, o personagem passou, juntamente com os demais heróis da King Features para a Rio-Gráfica e Editora (hoje, Editora Globo), ganhando revista própria, na década de 50, com histórias escritas e desenhadas pelos sucessores de Alex Raymond.

Aizen, no entanto, acabou sendo o único editor do mundo a dispor das primeiras pranchas de Flash Gordon no Planeta Mongo, já que nem mesmo a KFS contava mais com aquele material. Isso fez com que a EBAL republicasse toda a obra de Raymond, devidamente restaurada, em oito primorosos álbuns, em papel de alta gramatura e capas duras, composta de 420 pranchas: Flash Gordon no Planeta Mongo (pranchas 1 a 60), Flash Gordon no Reino das Cavernas (pranchas 61 a 118), Flash Gordon no Mar do Mistério (pranchas 119 a 148), Flash Gordon nas Florestas de Mongo (pranchas 149 a 212), Os Proscritos e o Tirano de Mongo (pranchas 213 a 269), Flash Gordon no Reino do Gelo (pranchas 270 a 327), Flash Gordon e os Poderosos de Mongo (pranchas 328 a 393) e Flash Gordon de Volta à Terra (pranchas 394 a 420).

É esse precioso acervo que a Opera Graphica Editora promete relançar, em uma única edição, ainda no corrente ano. Os loucos por gibis estão explodindo de emoção desde já.

A arte helênica de Alex Raymond

Alex Raymond foi, com certeza, o desenhista que mais influenciou as novas gerações. E não apenas nos quadrinhos, mas em todas as áreas da ilustração, da publicidade, da moda e do design em todo o mundo. Para o pesquisador Álvaro de Moya, “seus quadros têm a mesma qualidade dos maiores artistas de todos os tempos”.

Conta de Moya que, certa feita, de volta do Congresso de Lucca, na Itália, fez uma visita ao Museu do Louvre, em Paris, juntamente com Jayme Cortez e Maurício de Sousa, e, no enorme saguão onde está a escultura greco-romana, uma coisa saltou aos olhos deles. Anota: “De longe, dava para distinguir o que era romano e o que era grego. A escultura grega tinha uma leveza, um ritmo de linhas, um movimento que atingia as raias da perfeição. Lembramo-nos de Alex Raymond”.

Raymond, por sua vez, sempre afirmou que as histórias-em-quadrinhos, em si, eram uma forma de arte. E isso numa época difícil de fazer tais afirmações. Para ele, as HQs refletem a vida e o tempo com muito mais precisão e são mais artísticas do que a ilustração, pela criatividade:

“Um ilustrador trabalha com máquina fotográfica e modelos; um desenhista de histórias-em-quadrinhos começa com uma folha de papel em branco e sonha inteiramente a sua obra – ele, ao mesmo tempo, é roteirista de cinema, diretor, montador e ator”.

Alex Raymond foi o mais completo dos grandes criadores dos quadrinhos. Se alguns tiveram superioridade criadora ou maior audácia de estilo, souberam dar melhor costura no arranjo dos enredos ou mais precisão nos diálogos, nenhum contou, como ele, com uma gama tão variada de talentos, dominando todos os gêneros a que se dedicou.

De Moya cognomina Alex Raymond de Gustave Doré dos quadrinhos.

(CHG)

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