Foi há dez anos. Em 2006, o repórter integrava o júri da Caméra d’Or, em Cannes, sob a presidência de Jean-Pierre e Luc Dardenne. O catalão Albert Serra concorria ao prêmio da ópera prima com sua reinterpretação do mito de Dom Quixote, Honor de Cavalleria (Honra dos Cavaleiros).

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Não houve jeito de convencer os irmãos belgas da importância do filme. Descartaram-no rapidamente, como esteticista e vazio, e como se o Quixote, sobre o qual trabalhava o autor, não fosse o clássico que é. Honor de Cavalleria! Albert Serra seguiu fazendo seus filmes especiais. O antibíblico El Cant dels Ocels, La Historia de Meva Mort, com o qual ganhou, há três anos, o Leopardo de Ouro em Locarno. Com o título de História de Minha Morte, o filme deve estrear nesta quinta, 11.

Há um culto a Albert Serra. Em Tiradentes, na Mostra Aurora, já se teria tornado guru. Quando você faz pesquisas correlatas, aparecem sempre os nomes de Alexander Sokurov, Hou Hsiao-hsien, Michael Haneke, Pedro Costa, Apichatpong Weerasethakul. São diversos entre si, mas fazem um cinema autoral e exigente, de pesquisa. Sempre o mito na obra de Serra.

O Quixote, José e Maria (O Canto dos Pássaros) e, agora, o improvável encontro de Casanova com o Conde Drácula em A História de Minha Morte, Meva Mort em catalão. A sonoridade é sempre visceral na obra de Serra. Não apenas a musicalidade rascante da língua, mas o som, como se lembram os espectadores do seu Quixote e da sua fuga dos pais do Nazareno, pontuada pelo canto dos pássaros. O som joga de novo um papel decisivo em Minha Morte.

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Casanova é nomeado apenas uma vez, Drácula, nunca. Mas são eles. Casanova já foi personagem de grandes e polêmicos filmes de Luigi Comencini, Federico Fellini e Ettore Scola. Eram interpretados por Leonard Whiting, Donald Sutherland e Marcello Mastroianni. O Casanova de Serra é criado por Vincenc Altaio, poeta e produtor cultural da Catalunha. Drácula é Eliseu Huertas, um regular dos filmes do diretor, mas que permanece não profissional.

Casanova, você sabe, foi o sedutor veneziano que transformou seu apetite por sexo num livro póstumo de memórias. O filme tem quase duas horas e meia. Serra segue Casanova por uns bons 45 minutos pela Suíça e depois o leva aos Cárpatos, para o encontro com Drácula. Lá pelos 80 minutos, sentam-se de costas para a câmera. E falam.

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Os 70 minutos restantes são feitos dessas conversas em catalão. Discutem questões filosóficas e, embora opostos, encontram um interesse comum no sexo. São herdeiros da tradição libertina. Esqueça a moderna conotação pejorativa que carrega o termo ‘libertinagem’. São libertinos como os literatos e pensadores europeus que se abstraíram dos princípios morais de seu tempo, principalmente os ligados à moral sexual.

Aparentemente, um é gélido, o outro vulcânico. Um contempla desejoso o pescoço de suas vítimas. O outro deseja o intercurso. O que está em pauta é o desejo e a mentalidade do século 19, em que se passa a “história”. É bom colocá-la entre aspas porque Serra possui a própria agenda e não se interessa muito pela narrativa como ‘trama’. É um filme feito de rupturas, entreatos. Eventualmente, torna-se sangrento e violento.

Em A História de Minha Vida, Casanova evoca uma distante memória de infância, quando foi trancado por uma bruxa para tratar de uma doença. Ele evoca suas alucinações, como a mulher que desce pela chaminé. Serra introduz o conde vampiro nessas memórias, transforma-as numa história de morte. Drácula atrai jovens mulheres ao seu castelo, atrás delas vai Casanova. Diferentes, mas iguais. A diferença na igualdade, a semelhança na diversidade. O curioso é que Meva Mort é contemporâneo de outra interpretação do mito do vampiros, o romântico e mórbido Amantes Eternos, de Jim Jarmusch. Como cinema, Meva Mort propõe um extraordinário exercício de interpretação de dois não atores. Boa parte do filme é ocupada pelas reflexões de Casanova enquanto olha as filhas do fazendeiro em cuja casa se hospeda.

Na segunda parte, esse olhar, esse movimento interiorizado transfere-se para Drácula. E, quando se diz que ambos falam, ambos também calam, e o silêncio, como sempre, é de ouro. É um filme lento, belo. Através de sua produtora Andergraus Films, Albert Serra, o novo underground, filma (grava?) em digital, mas não é só, ou não é pelo custo. A mídia interessa-lhe pelo tempo, pela granulação da imagem. E pela eficiência nos climas que quer criar.