Ex-integrante do The Smiths vem a Curitiba

Por trás, em um enorme telão, as imagens granuladas e a voz de Morrisey provocam um pequeno desconforto provocado pelo passado que parece eterno. É como se um fantasma assombrasse por trás e sua presença fosse tão nítida quanto reconhecida. Na poltrona do palco da Fnac Curitiba, uma longa franja e os óculos escuros protegem um músico solícito, porém sempre recorrendo a respostas murmuradas, curtas ou evasivas quando surge alguma pergunta de tom mais complexo e polêmico.

Quem está sentado é o britânico Andy Rourke, 44 anos de idade, músico que atualmente divide seu tempo entre a banda Freebass (formada por ele e outros dois baixistas de sua geração da cidade inglesa de Manchester: Peter Hook e Mani, respectivamente mais conhecidos pelos trabalhos com os grupos Joy Division/New Order e Stone Roses/Primal Scream) e a atividade paralela de DJ. Mas a imensa maioria da platéia estava lá mesmo para reverenciar aquele que entrou para a história como ex-integra dos Smiths.

Estrela principal do bate-papo musical mensal promovido pela rádio FM curitibana Lúmen, Rourke – hoje tão franjudo, cabeludo e acima do peso quanto este que escreve este texto – escolheu a capital paranaense para inaugurar, no final de novembro, uma breve segunda turnê pelo País. Se a imagem do topetudo loiro e esbelto que dividiu o palco com Moz, Johnny Marr, Mike Joyce e Craig Gannon entre 1983 e 1988 ficou para trás, os royalties do trabalho feito naquela época são ainda sua principal fonte de sobrevivência. O apego ao passado também não demora a se revelar.

Na conversa com os fãs, exalta seus heróis das gerações anteriores (sobretudo Bill Wyman e John Entwistle, baixistas originais do Rolling Stones e do Who), relembra histórias do underground de Manchester (como a de noites em que ia com Marr ao clube Haçienda – antes do estouro de Manchester – e o lugar ficava vazio e largado às moscas ou a da sala de ensaio, uma das duas da cidade, que era compartilhadas por músicos dos Smiths, Buzzcocks e New Order). E se estende ao set que sai das caixas do Vox Bar (por onde também passou em 2007, em sua estréia por terras brasileiras): Rourke toca muitos de seus contemporâneos oitentistas.

Andy também sempre será obrigado a falar sobre sua ex-banda e ex-companheiros. Sobre Marr e Joyce – ambos com quem ainda costuma conversar periodicamente – não se sente nem um pouco desconfortável em falar. Defende, por exemplo, o fato do guitarrista (atualmente tocando e excursionando como o quarto elemento do grupo britânico Cribs) pular de projeto em projeto e agora de banda em banda, creditando isso ao fato de uma mera e indomável insatisfação dele próprio com a evolução como instrumentista. Entretanto, sobre Morrissey – o que mesmo que não para de cantar sobre seus ombros – tenta se esquivar ao máximo que pode.

Assume que perdeu o contato com o vocalista desde que ele mudou-se para Los Angeles (vale lembrar que Rourke chegou a gravar alguns hits dos primórdios da carreira solo do músico, como The last of the famous international playboys, Interesting drug e November spawned a monster). Diz que, por tudo o que conhece dele, Moz está longe de ser considerado racista e que, como cidadão nascido na Inglaterra, tem todo o direito de se enrolar na bandeira do Reino Unido. Mas que sempre gostou de provocar uma polemicazinha e de vez em quando tece algum “comentário estúpido”.

Rourke também defende Marr quando perguntado sobre o que aconteceu, de fato, durante as sessões de gravação do último álbum de estúdio. “Não é verdade que Johnny abandonou a gente no meio de tudo, anunciando sua saída da banda. Quando ele pegou o vôo para Los Angeles, os trabalhos já haviam terminado. Não sei de onde saiu esta notícia veiculada pela NME. Talvez isso tenha vindo até mesmo do próprio Morrissey”, despista, sem deixar de soltar uma farpa para o lado do vocalista. O fato é que, com a ruptur,a provocada por Marr, o disco Strangeways here we come acabou não tendo suas músicas executadas ao vivo – ele foi lançado após o anúncio da dissolução da banda e logo depois Moz embarcou em carreira solo, levando consigo Andy, Mike e Craig Gannon (que chegara a atuar por pouco tempo como o segundo guitarrista dos Smiths) em algumas gravações. “Aquele disco tinha canções muito boas. Gostaria muito de ter saído em turnê e tocado várias delas para os fãs.”

Por falar em canções boas, quatro delas (I started something i couldn’t finish, Girlfriend in a comma, Last night i dreamt that somebody loved me, Stop me if you think you’ve heard this one before) estão incluídas no mais recente disco da banda, que acaba de sair (lá fora). É mais uma espécie best of, desta vez cheio de aperitivos para os fãs. The sound of The Smiths é uma coletânea dupla, com 46 faixas. No primeiro disco foram reunidos os principais hits da banda, incluindo aquelas músicas que deveriam ter sido lançadas em single mas que por algum motivo acabaram não saindo no formato (como Still ill e You just haven’t earned it yet, baby).

E ao lado de clássicos eternos (Panic, Ask, There is a light that never goes out, Hand in glove, This charming man, Bigmouth strikes again, William, it was really nothing, Shoplifters of the world unite, The boy with the thorn in his side e mais alguns outros), ainda fora m estrategicamente dispostas as versões alternativas de How soon is now (tirada do compacto em vinil 12), Barbarism begins at home (do single 7) e What difference does it make (take de uma gravação exclusiva para o programa do falecido DJ John Peel).

Para a metade final foram reservadas outras faixas de impacto mais secundário (porém não menos queridas pelos fãs), b-sides e mais um punhado de raridades. Entre preciosidades como Jeane (inexplicavelmente nunca antes incluída em qualquer álbum), Please, please, please, let me get what i want, Asleep cemetery gates e The queen is dead (faixa-título do clássico álbum de 1986, considerado a grande obra-prima da banda e presença garantida na seleção dos melhores discos do rock de todos os tempos), há quatro gravações ao vivo (Meat is murder, London, Handsome devil, What’s the world?), um take alternativo de This charming man (com os vocais gravados por Morrissey em Nova York) e a versão demo de Pretty girls make graves.

“E inevitável escapar de relançamentos. A indústria funciona assim. De tempos em tempos, há uma nova geração que começa a descobrir as bandas antigas e sempre haverá uma nova coletânea reciclando o mesmo material”, analisa Andy, que teve pequena participação desta vez – ele ajudou Marr no processo de seleção das faixas do álbum duplo, enquanto Morrissey ficou responsável apenas pela escolha da capa e aprovação do trabalho gráfico completo.

Contudo, o baixista revela que não existe muita saída para os fãs que esperam alguma coisa nova em folha. “As músicas que a gente fez já foram todas lançadas. O que existe são versões alternativas, experimentações feitas em estúdio, takes descartados, gravações ao vivo… São estas as variações, mas algo inédito não existe”, confessa, jogando um balde de água fria naqueles mais otimistas e esperançosos.

No fim do bate-papo, fica inevitável não questionar a mística de Manchester. Afinal, desde que 42 seletas pessoas (incluindo o mogul doido Tony Wilson e o completamente deslocado Mick Hucknall, o ruivo vocalista do Simply Red) assistiram à histórica passagem do Sex Pistols por lá em 1976 que a cidade nunca mais parou de produzir boas bandas de rock (Buzzcocks, Joy Divison, New Order, Smiths, Stone Roses, Happy Mondays, Inspiral Carpets, Oasis, Elbow, mais recentemente, Ting Tings e Courteneers são apenas alguns dos exemplos de primeira grandeza). “Quando a gente começou a tocar, havia em Manchester umas duas ou três salas de ensaio, apenas. Então, bandas como Smiths, Buzzcocks e Joy Division costumavam se encontrar por lá e compartilhar informações e os músicos tocavam uns com os outros.

E até hoje isso parece não ter mudado muito. Em Manchester ainda continuam poucas as opções de encontro do pessoal de lá. Se for ver, só devem ter as mesmas duas ou três s,alas de ensaio”. Sobre o fato da alta qualidade das formações mancunianas, Andy é direto e brincalhão. “De fato, o mistério deve estar na água de lá.”

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