Introdução – No começo do século XX, o Brasil era a única nação independente que ainda possuía escravos. A Lei Áurea foi assinada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888. A partir de então os 723.719 escravos que existiam oficialmente no país estavam livres. Mas tanto o contexto anterior quanto o posterior eram muito complexos (Eduardo Bueno, 2003). O objetivo do presente trabalho é pesquisar bibliograficamente pontos importantes do processo de libertação dos escravos.
Fundamentação Teórica – Na primeira metade do século XIX, a Inglaterra, que estava determinada a interferir nos assuntos de Portugal no Brasil, influenciou quanto às mudanças no que diz respeito a eliminação do tráfico internacional de escravos. Negociou diversos tratados que foram recebidos com cautela pelos governantes brasileiros. Por isso o Parlamento Inglês aprovou o Bill Aberdeen (1845), ato que autorizou a Marinha inglesa a tratar os navios negreiros como navios piratas (Boris Fausto, 2003).
Em 28 de setembro de 1871 o gabinete conservador, que tinha à frente o visconde do Rio Branco, aprovou a Lei do Ventre Livre que estabelecia como livres os filhos de escrava nascida no Brasil. Esta foi uma jogada política para ?arrancar a bandeira abolicionista das mãos dos liberais (…) e bloquear por anos a ação dos abolicionistas mais radicais, garantindo, assim, que a libertação dos escravos fosse um processo ?lento, gradual e seguro?. Na prática a lei seria burlada desde o início, com a alteração de data de nascimento de inúmeros escravos?. (Eduardo Bueno, 2003). Também não foi levado a sério o Fundo de Emancipação, criado pela mesma lei e originário da Receita Federal, pois não foi respeitada sua finalidade, o pagamento da alforria de escravos, por ser desviado para outras finalidades. Como Explica Eduardo Bueno (2003), havia um esquema para burlar a ?Lei Rio Branco??: Muitos proprietários tiraram os recém-nascidos das mães e os mandavam para instituições de caridade na qual as crianças eram vendidas. Boris Fausto (2003) comenta que essa lei ?produziu escassos efeitos. Poucos meninos foram entregues ao poder público e os donos de escravos continuaram a usar seus serviços?.
Eduardo Bueno (2003) destaca que a campanha abolicionista tomou força em 1884, mas em 1885 o Parlamento entrou em ação novamente para retardar a abolição. No dia 28 de setembro aprovou a Lei Saraiva-Cotegipe no Senado comandado pelo presidente do Conselho de Ministros, o barão de Cotegipe. A lei libertava os escravos com mais de 65 anos e determinava normas para libertação gradativa, através de indenização. Esta lei não visava beneficiar os escravos, mas seus proprietários que se livrariam dos mais velhos, pois existiam aqueles senhores que tentavam emancipar escravos que estavam doentes ou inválidos em vez de emancipar os mais qualificados, tentando conseguir indenização por escravos que não ?prestavam? mais para o trabalho. Havia ainda a tentativa dos proprietários de escravos tentarem alforriar escravos que estavam prestes a entrarem na lista de escravos a serem emancipados pelo Fundo de Emancipação. Enquanto isso, os recursos desse Fundo eram escassos e ajudaram a poucos escravos. Como afirma Emília Viotti Costa (1986), entre 1873 e 1883 foram alforriados no País mais de setenta mil escravos, dos quais apenas pouco mais de doze mil pelo Fundo de Emancipação. Além disso, escravos libertos continuaram a viver como escravos, a serem vendidos com suas mães e a serem castigados.
Os abolicionistas, como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Antônio Rebouças, Luis Gama, entre outros, esperavam que algo fosse feito a favor dos libertos, como sua integração numa democracia moderna, mas, como afirma Eduardo Bueno (2003), ?os libertos quase 800 mil foram jogados na mais terrível miséria. O Brasil imperial e, logo a seguir, o jovem Brasil republicano negou-lhes a posse de qualquer pedaço de terra para viver ou cultivar, de escolas, de assistência social, de hospitais. Deu-lhes, só e sobejamente, discriminação e repressão?.
Mesmo que muitos dos escravos tenham permanecido nas fazendas, recebiam salário de miséria. Aqueles que foram para as cidades iniciaram os chamados bairros africanos que deram origem às favelas. Hebe Maria Mattos (2005) menciona que os ?os últimos senhores foram simplesmente atropelados pela fuga em massa de seus escravos. O quadro era de desordem generalizada?. Por essa situação, somente alguns representantes das províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais votaram contra a Abolição e exigiram indenização pela propriedade, mas a Lei Áurea aprovada não indenizou os senhores e não adotou nenhuma medida de reparação aos escravos libertos. Até o surgimento dos movimentos negros do século XX, a situação permanecia quase a mesma, diz Hebe Maria Mattos (2005), e a discussão atual a respeito do que pode ser feito para mudar é uma oportunidade para refletir sobre o passado e o presente.
A carta de liberdade ou alforria era um mecanismo para a concessão da liberdade. Era documento jurídico que se configurava como ato entre vivos (senhor e escravo) ou como última vontade do senhor. Ela trazia informações respectivas ao escravo, como nome, sexo, cor, etc. Sobre o proprietário existiam dados a respeito de seu nome, sexo, estado civil, profissão, tipo e local da residência. As cartas de alforria informam sobre os motivos da manumissão (libertação). Como modalidade poderiam ser a título gratuito, oneroso, ou condicional (Adriano Bernardo Lima, 1998).
Manuela Carneiro da Cunha (1985) explica primeiramente os dois tipos de alforria, uma que podia ser conseguida gratuitamente, a outra que podia ser comprada. A distinção entre ambas é falsa, porque muitas das alforrias gratuitas eram interligadas a condições que suspendiam a gratuidade e determinavam anos de serviços a serem cumpridos. A outra modalidade era constituída de alforrias condicionais gratuitas como variante não monetária das alforrias pagas.
Para entender melhor as modalidades de alforrias, Manuela Carneiro da Cunha (1985) explica que os escravos passavam de um tipo ao outro com muita facilidade, porque existiam na escravaria grandes subdivisões. Por exemplo, os escravos urbanos ou negros de ganho trabalhavam fora de casa através de vendas, ou carregavam coisas de um lugar para outro. A segunda categoria era constituída pelos escravos domésticos que trabalhavam para o senhor. Em terceiro lugar existia a modalidade de escravos de aluguel.
Ao ter acesso ao dinheiro, os escravos podiam acertar com seus senhores serem coartados. ?A coartação é uma das formas de liberdade sob condição: era a liberdade a crédito. (…) Tratava-se de concordar com um preço que o escravo devia pagar a seu senhor, em várias prestações. A partir desse acordo, o escravo passava a uma condição intermediária, nem alforriado nem escravo, mas (…) já com vários privilégios de livre?.(Manuela Carneiro da Cunha, 1985).
A alforria era muitas vezes apresentada como dádiva, como generosidade ou estima pelo escravo demonstrada pelo senhor. Essa postura é denominada por Manuela Carneiro da Cunha (1985) de ideológica porque sua expectativa era transformar o escravo em um agregado, de tal modo que se o alforriado mostrasse ingratidão havia freqüentemente rescisão da alforria. Era comum haver na carta de alforria uma cláusula que estabelecia que o escravo se tornava agregado e devia lhe prestar serviços durante certo número de anos.
Um estudo sobre o processo da alforria dos escravos de Mariana (1750-1759), realizado por Carlo Guimarães Monti (2001), é um exemplo das práticas de alforrias. Ele encontrou na pesquisa 38,79% de alforria gratuita, sendo que as mulheres receberam a maior parte das alforrias (42,96%). As condições impostas eram expressas por serviços, que são 50% das condicionais, o restante é relativo a uma variedade de exigências. Em alguns casos as alforrias condicionais por serviços definiram a tarefa a ser cumprida, bem como o tempo em que o liberto estaria à disposição do seu senhor. Das 58% cartas concedidas em troca de algum pagamento, 81,68% foram pagas pelos próprios escravos. O trabalho parcelado em período de tempo, coartação representou 75,75%. Casos em que um escravo dava outro escravo ao senhor em troca da sua liberdade somaram 3%. Carlo Guimarães Monti (2001) conclui que os libertos permaneciam com algum tipo de vínculo com seu ex-senhor.
Outro exemplo é o da escrava Maria Thomásia Baptista que trabalhou em Campo Largo, no Paraná. De acordo com Verônica Vidal (2003), em 16 de novembro de 1882, Maria Thomásia Baptista, escrava de D. Maria Ferreira da Silva, ?tendo em seu poder a quantia de duzentos mil reis, pecúlio para sua liberdade, requer se mande passar guia para que seja dita quantia recolhida aos cofres públicos?. A guia foi passada no mesmo dia.
Em 5 de fevereiro de 1883, diz Maria Thomásia Baptista, escrava de D. Maria Ferreira da Silva, que precisa recolher na Coletoria desta cidade a quantia de trinta mil-réis para ser revertida em favor de sua liberdade e para cujo fim precisa, por seu despacho, que ordene a esse recolhimento. Além disso, ela precisa de um curador.
O próximo passo é dado pela senhora da escrava Maria, ao fazer a petição de liberdade para a escrava:
?Em 19 de fevereiro de 1885, diz Maria Ferreira da Silva que tendo sua escrava Maria recolhido o pecúlio de 230:000 mil-réis a Coletoria desta cidade, sendo 200:000 mil-réis em 18 de novembro de 1882 e 30:000 mil-réis em 5 de fevereiro de 1883, e querendo a mesma sua escrava libertar-se conforme o documento junto, requer a V. S. se digne mandar entregar a referida sua escrava o pecúlio e juros a que tiver direito?.
Nesse mesmo dia a proprietária lhe concede a liberdade, na dependência de que a importância se complete:
?Eu abaixo assinada dou liberdade à minha escrava Maria, pela quantia de setecentos e cinqüenta mil-réis (750$000), recebendo desde já o pecúlio que a mesma recolheu na Coletoria desta cidade, na importância de 247 mil 165 réis incluídos juros vencidos até esta data e o resto com prestações mensais de seis mil reis em proporção à dita quantia até que se complete aquela importância. Feito o que (…) encontra (…) a mesma sua escrava em pleno gozo de sua liberdade e para validade mando passar a presente em que somente assino com as testemunhas?. (Verônica Vidal, 2003).
A dissertação de mestrado realizada por Enidelce Bertin (2001) que estudou as alforrias em São Paulo do século 19 afirma que a alforria não era um ato fraternal como os proprietários deixavam transparecer, mas instrumento de controle contra possíveis rebeliões. Raramente a carta libertava o escravo de uma vez. Exemplo disso é o lançamento de uma carta de liberdade passada por Jerônimo Nunes Munhós e D. Benedita Joaquina do Espírito Santo a favor de sua escrava Maria Crioula, de 17 anos mais ou menos:
?Declaro que tendo criado nossa escrava Maria, e tendo-lhe grande amor e amizade e desejando favorecê-la do modo que é compatível com as nossas posses (…) resolvemos dar liberdade a dita nossa escrava, sob condição porém que ela nos servirá durante nossa vida, e só depois de nossa morte é que entrará no gozo de sua liberdade, e que se tiver filhos, estes nos servirão como escravos enquanto vivermos e ficarão bons depois de nossa morte, assim como sua mãe. São Paulo, 7 de dezembro de 1857?.
No final do século 19, diz Enidelce Bertin (2001), as alforrias aumentaram, pois a grave crise de mão-de-obra do período levou muitos a emitirem cartas de alforria como forma de garantir a fidelidade dos serviços.
Jorge Antonio de Queiroz e Silva é pesquisador, historiador, professor. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.
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