Era uma vez no Reino da Sapucaí

Quem ainda não assistiu ao vivo um desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro não sabe o que está perdendo. Em primeiro lugar é preciso esclarecer que existem dois desfiles: o da tevê com as imagens editadas que transformam o espetáculo numa coisa quadrada e quase sem emoção; e o carnaval da avenida que é sensacional e oferece ao público a sensação de estar dentro de um conto de fadas, com direito a muitas rainhas (ma-ra-vi-lho-sas) e uma corte dividida entre nobres e plebeus.

A divisão de castas – ou classes sociais – já começa nos lugares. Tanto para quem vai desfilar, quanto para quem vai assistir. No desfile quanto maior o prestigio, melhor é a posição dentro da avenida. Assim, conseguir uma colocação em cima de um carro alegórico com direito a fantasia de luxo é sinal que o folião em questão está com a bola toda. Em compensação quem gosta de desfilar e não tem um grande pistolão pode ficar embaixo, empurrando o carro feliz da vida. Uma posição intermediária é sair nas alas pagando pelas fantasias com preços que variam de acordo com o luxo e o acabamento.

Se para desfilar já existe uma divisão social, para assistir os desfiles ela é ainda maior. O sambódromo idealizado na década de 80 por Darcy Ribeiro, com projeto de Oscar Niemeyer, não é exatamente um exemplo de democracia. Lá o regime que impera é a monarquia mesmo. E fica bem acentuada a diferença entre os nobres, plebeus e a ralé. Começando de baixo pra cima. A ralé é o conjunto daquele sujeito duro, sem um tostão furado, que quer participar do carnaval, mas não tem condições financeiras. O que ele faz? Fica do lado de fora do sambódromo escutando tudo muito de longe, olhando o pessoal chegar fantasiado para o desfile e achando tudo uma beleeeeuuza. Se o dinheiro der, compra um churrasquinho de gato.

Quanto maior a altura do destaque, maior o prestígio que ele tem.

Faz parte dos plebeus aquela turma que economiza um pouquinho para se divertir e compra um ingresso de arquibancada nos setores 1 ou 6 e 13 – respectivamente situados na concentração e na dispersão das escolas. Os dois locais são ruins, mas, se tiver que escolher, prefira sempre a concentração. É lá que a bateria esquenta, os puxadores sempre reverenciam o público com o famoso “Aaaalô setor ummmm!”, a rainha faz os primeiros acenos para seus súditos e a escola está começando a desfilar. Já na dispersão (6 e 13), o pessoal que desfilou já chega de língua de fora e não faz mais graça nenhuma. É importante lembrar que estes setores são populares e, com isso, perdem bastante no quesito glamour. As arquibancadas localizadas entre os setores 3 e 11 são bem melhores de frequência e para assistir o desfile mas ainda são arquibancadas.

Chegamos então a nobreza e a aristocracia do samba. Isto é: as frisas e os camarotes. As frisas são mesas de pistas com seis cadeiras onde o público pode assistir o desfile bem de pertinho. É quase impossível de comprar quando começa a venda em setembro e no cambista o valor chega a R$2.000 cada cadeira por noite. Essa exploração se explica: a frisa é o melhor lugar da avenida -principalmente se a fila for a “A”. É ali que o público tem o maior contato com quem está desfilando e vê bem de pertinho a performance das rainhas das baterias – sempre lindas -, a evolução do mestre-sala e porta-bandeira, a comissão de frente e, melhor de tudo: sente a vibração da bateria como se fosse um integrante dela. É uma sensação inexplicável que contagia e faz até o mais desengon&c,cedil;ado turista cair no samba. Se for gringo então, a expressão é “so exciting”.

O topo da pirâmide social na Sapucaí são os camarotes. Eles são divididos entre PF e PJ. Ou seja, pessoa física (que são poucos) e pessoas jurídicas (a maioria). São dezenas de empresas que compram os camarotes para agradar seus clientes: companhias telefônicas, rede de hotéis, escolas de samba, e – o grande filão das revistas de celebridades -as companhias de cerveja que travam uma verdadeira guerra de bastidores para ver quem arrebanha mais vips.

Nestes camarotes, principalmente aqueles bancados pelas cervejas, o que menos importa é assistir o desfile. Aliás, algo dificílimo de fazer – uma vez que existe uma multidão de convidados para um curto espaço de janelas. É lá que o balacobaco impera entre atores, músicos, jogadores de futebol, modelos profissionais, atletas, empresários entre outras categorias do chamado “meio circulante”. Como o clima é de carnaval, todo mundo está de camiseta igual e a cerveja rolando à vontade, tem muita gente que se passa na birita. O melhor de tudo é que quase ninguém repara.

No fim do desfile, dia já raiando, a euforia dá lugar ao cansaço. O conto de fadas chega ao fim com os nobres vips entrando em vans alugadas e os pobres plebeus se apertando na fila do metrô. Em comum a sensação de dever cumprido: se esbaldar na alegria e esperar com ansiedade até o próximo carnaval.