Dois importantes filmes brasileiros da safra 2003 estréiam hoje em Curitiba: Desmundo, de Alain Fresnot, chega com cinco meses de atraso em relação a São Paulo e Rio; Amarelo Manga, do pernambucano Cláudio Assis, não demorou tanto – entrou no circuito em agosto -, mas já foi bastante comentado pelos prêmios que arrebatou, como o Cine Ceará, o 15.º Encontro de Cinema Latino-Americano de Toulouse e o Festival de Brasília.

O quarto filme do franco-brasileiro Alain Fresnot, que antes dirigiu Trem Fantasma, Lua Cheia e Ed Mort, baseia-se no livro da escritora cearense Ana Miranda para mostrar os primeiros anos da colonização brasileira do ponto de vista das mulheres. Mais precisamente de uma mulher, Oribela (Simone Spoladore), uma das adolescentes órfãs enviadas pela Coroa Portuguesa para desposar os colonizadores e “purificar a raça”.

Sensível e recatada, a moça é oferecida a Francisco de Albuquerque (Osmar Prado), rude proprietário de um engenho de açúcar. Oribela estranha tudo e todos, a terra, a casa, o marido, a sogra, a cunhada e os trabalhadores do engenho. Francisco, há muito sem ver mulher branca, apressa-se em consumar o matrimônio, mas recua quando ela lhe pede um tempo para “conhecê-lo e aprender a admirá-lo”.

Inconformada com a situação, a órfã decide fugir, na esperança de embarcar num navio e voltar a Portugal. Para isso, pede ajuda a Ximeno Dias (Caco Ciocler), um comerciante de escravos que ela conhece no engenho. Seduzido por Oribela, Ximeno resolve ajudá-la. Está formado o triângulo que será o núcleo da ação de Desmundo.

Superfície

Apesar do rigor formal -que levou Fresnot a “traduzir” o roteiro para o português arcaico, resultando no insólito de assistirmos a um filme brasileiro legendado -, e da inegável competência do elenco, a impressão que fica é que Desmundo flutua na superfície. Não se aprofunda nos conflitos centrais, passa ao largo de interessantes tramas paralelas – como a incestuosa relação da família de Francisco – e acaba desperdiçando uma boa oportunidade de retratar o difícil parto da nação brasileira. Negros e índios escravizados, por exemplo, aparecem como cordeiros resignados (ainda que haja uma ou outra menção à antropofagia). Esta aparente “descontextualização” do conflito protagonista prejudica a própria performance do núcleo central, que também fica na “casca”. A exceção é Beatriz Segall, que enriquece a sua ponta como a receptadora das órfãs ao ponto de lamentarmos o seu desaparecimento na história.

Uma Recife rodriguiana

Se Desmundo fica muito na superfície, tem gente que vai achar que Amarelo Manga vai fundo demais no seu retrato cru e desagradável de uma história de desejos e desencontros amorosos na sórdida periferia de Recife.

No melhor estilo rodriguiano, Cláudio Assis retrata as paixões que se entrelaçam num hotel decadente da capital pernambucana: O homossexual Dunga (Mateus Nachtergaele), funcionário do estabelecimento, nutre um desejo incontido pelo açougueiro Wellington (Chico Diaz), que todo mês entrega uma peça de carne no hotel. E há a esposa de Wellington, Kika, uma evangélica que não suporta traição e fica uma fera quando descobre o marido com uma amante, ao ponto de agredi-la violentamente.

Mas o núcleo que melhor retrata essa mistura de apatia e desejo reprimido que marca o filme é o de Jonas Bloch e Leona Cavalli. Ele é Isaac, um necrófilo atormentado que se apaixona por ela, a dona do Bar Avenida. Lígia, por sua vez, é uma jovem cansada da mesmice, da solidão e do machismo dos freqüentadores do bar. E dessa forma Assis costura um retrato indigesto das intrigantes relações que borbulham nos subterrâneos da cidade, que aparecem também nas camadas mais abastadas. Só que melhor camufladas.

De modo que o amarelo do título nada tem a ver com a fruta ou com o ouro, mas com o tom poeirento do lugar e das pessoas. “Descobrimos que o amarelo está no discurso, na imagem, nos objetos e nas pessoas. Está no cabo da enxada, nos chapéus de palha e também nas remelas dos personagens”, define o diretor.

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