Entender o global para construir a história local

O assunto globalização vem se tornando comum nas conversas de pessoas de todas as idades. Cada indivíduo pode ter experiências positivas ou negativas de globalização no seu cotidiano. Se compra pela internet um produto mais em conta e tem acesso a eventos culturais de outros países, sua experiência é positiva. Se o supermercado no qual faz compras e é bem atendido pertence a proprietários locais, já não será a mesma coisa se for vendido para donos de grandes redes de supermercados internacionais, pois, ao enxugarem seu quadro de funcionários, farão o consumidor passar mais tempo na fila, além de não encontrar a mesma diversidade de produtos.

Rafael Villa, cientista político, professor de Ciência e Relações Internacionais na USP – Universidade de São Paulo, salienta que “nem tudo o que a globalização produz é ruim. Aliás, é um processo que pode ser aproveitado como outra forma de pensar. Karl Marx apontava para a importância de questionar como se movimenta a ideologia por trás da globalização, questionamento esse que pode despertar as pessoas para o desenvolvimento da sua cidadania.”

A realidade da perda de empresas menores para as maiores é entendida como parte da globalização a qual é explicada pelo economista Paulo Sandroni (1999) como “o fim das economias nacionais e a integração cada vez maior dos mercados, dos meios de comunicação e dos transportes”. Existe outra perda, segundo Ianni (1997): a perda das referências locais, a destruição do passado. Para Hobsbawn(1995) essa destruição foi um dos fenômenos mais tristes do final do século XX. O crescimento dos jovens vem ocorrendo sem relação alguma com o passado público da época em que vivem, precisando da rememorização do local.

Várias globalizações. Para o cientista político, Rafael Villa, “a globalização ou mundialização refere-se a um crescente processo de homogeneização e de interconexão mundial de elementos como política, economia, cultura e idéias. Não existe globalização no singular. Porém, a mania de falar de globalização como se fosse um fenômeno único é herança de um pensamento que a identificou com aspectos econômicos, fluxos financeiros e mundiais do comércio, mas pode-se falar de outros tipos de globalização: cultural, de formas de consumo em âmbito mundial, por exemplo, dos povos ocidentais. Certamente essas formas foram de alguma maneira incorporadas em vários lugares do mundo, desde os Estados Unidos passando pela América Latina, Oriente Médio e até a Argentina.”

Entre os vários tipos de globalização, o professor Rafael evidencia a globalização política que, “com o fim da guerra fria (após a segunda guerra mundial), tende a ser confundida com a única forma de governo de democracia liberal. Qualquer país, ao participar da globalização política, não tem outra alternativa a não ser de assumir a forma de democracia liberal.”

Destaca também a globalização social, “a globalização da pobreza, dos aspectos ambientais e dos desequilíbrios ecológicos como o aquecimento global e seus efeitos que podem ser sentidos com a mesma intensidade em diferentes pontos do planeta, não importa se são os Estados Unidos os que produzem maior quantidade de gases carbônicos que influenciam as temperaturas. Se esses gases carbônicos atingissem só o território dos Estados Unidos pouco haveria a reclamar, mas o problema é que esses fenômenos atingem a população mundial.”

O professor da USP acrescenta que “a globalização do consumo afeta os valores, as tradições, os costumes, as formas de ver de outras culturas e, por isso, tende a gerar resistências e ressentimentos locais. Quando essas formas de globalização ameaçam certas culturas por meio de um projeto de dominação, então a globalização do consumo não é vista como um processo normal. (…) Certamente que o fenômeno da globalização constitui a parte nova da relação de existência capitalista, dos novos estilos de vida, da nova forma de sustentação e da nova forma de conceber o que é local e o que é global, mas é carente do sentido humanista. Como a técnica, a tecnologia é um produto social. Deve-se levar em conta que a manipulação de elementos como técnica e ciência passam pela responsabilidade social, isso significa ter noção humanista da técnica.”

Globalização, educação e história local. Um dos modos de resistir aos efeitos negativos da globalização é a vivência das três tecnologias: a oralidade que resguarda a memória; a escrita/impressão que mantém o caráter do devir (história), e a informática/rede que ensina relações com múltiplos centros. Elas devem estar presentes na sala de aula e ser entendidas como modos de fazer. (LEVY, 1993)

Convivem no mesmo local a latência das histórias guardadas nas memórias dos indivíduos que talvez tenha sido revelada e que corre o risco de perder-se para sempre, e a velocidade do hipertexto que estabelece informação e interação o tempo todo. Se não houver resgate das identidades locais, os indivíduos se sentem sem identidade, pois a interação nas redes de informação perde seu significado sem a dialética da relação presente-passado. Quanto mais cresce a velocidade da interação do hipertexto mais surge a necessidade de valorizar a oralidade e a escrita.

Se a resistência aos efeitos negativos da globalização conduz à preservação da memória, constrói a consciência histórica que, segundo MENEZES (1984), passa a ser vista como força viva do presente, como referência da mudança, pois “se não houver memória, a mudança será fator de alienação e desagregação”, ou seja, mantendo a consciência histórica, pode-se tirar vantagens do que é negativo no processo de globalização transformando-o em positivo.

A reconquista das raízes familiares é exemplo de busca da agregação que resiste à fragmentação do global como fez a historiadora e escritora Liamir Santos Hauer no livro O Circo (2000). Ao retomar sua vida e a vida da família, com rara sabedoria, resgata o sentido da história familiar. Lembra Ortiz (1997): “(…) a mundialização da cultura, para existir, deve se tornar uma dimensão da vida cotidiana, deve se localizar. Porém, assim fazendo, rearticula as relações de força dos lugares nos quais se enraíza”, ou seja, o local se fortalece com o global.

Alunos vivem a história local em Almirante Tamandaré. Diante da complexidade da globalização, os historiadores deparam-se com a necessidade de dilatar seus horizontes teóricos, pois os diferentes sistemas mundiais se alteram velozmente. “As desigualdades sociais (…) e as devastações ambientais levam-nos enquanto historiadores e cidadãos a pensar que, verdadeiramente, o que está em crise é o modelo de civilização adotado.”(Avelino, 1997)

Para ARIÈS (1989), “à medida que crescem as divisões entre os pobres, a globalização provoca movimentos evidentes dos seres humanos que cruzam as linhas divisórias entre regiões e classificações. Parece que vivemos num universo com problemas não resolvidos. Só a História pode (…) limitar e precisar o absurdo do mundo, na medida em que responde aos problemas levantados pelo presente”.

A preservação da memória local é um dos modos mais inteligentes e duradouros de resistir, como afirma BOSI (1994): “Podem arrasar as casas, mudar o curso das ruas; as pedras podem mudar de lugar, mas como destruir os vínculos com que os homens se ligavam a elas? (…) À resistência muda das coisas, à teimosia das pedras, une-se a rebeldia da memória que as repõe em seu lugar antigo”.

Com estímulo da diretora, professora Walkíria Maria Bini, e da supervisora pedagógica, professora Doroti de Souza Coelho, do CEEBJA – Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos Airton Senna, na cidade de Almirante Tamandaré-PR, os estudantes do primeiro e segundo ano do ensino médio, com o objetivo de preservar a memória, foram impulsionados na aula de história para um trabalho escrito de resgate da história local. As alunas do 10 C, Jussara Razzotto Santos e Kelly Fernandes, estudaram a história do município de Almirante Tamandaré. Utilizaram informações relatadas por historiadores desde a época dos índios Tinguis até os dias atuais, informaram o que a cidade tem a oferecer hoje aos seus habitantes e apresentaram o trabalho conforme as normas da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. Os alunos do 1.º A, Joelma Damaris Sabadin Santos, Marli do Carmo, Lucilene Maria Ferreira, Roseli de Lima, Edson Luiz Faria e Roselita de Lima, escreveram sobre as origens do colégio no qual estudam, inseriram fotos das dependências e dos profissionais que lá trabalham, como registro do texto histórico.

Com essas atividades e muitas outras que podem realizar, os estudantes desenvolverão o gosto pelo resgate da cultura local e encontrarão seu espaço de vivência da cidadania na comunidade.

Jorge Antonio de Queiroz e Silva

é especialista em Metodologia do Ensino de História e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.E-mail:
queirozhistoria@terra.com.br

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