Uma noite e Mick Jagger deixou tudo muito claro nas pouco mais de duas horas em que os Rolling Stones ocuparam o palco do Estádio do Morumbi, nesta quarta-feira, 24, em sua primeira apresentação em São Paulo (a segunda e última será no próximo sábado, 27). Essa banda está na estrada há mais de 50 anos, porque soube, mais do que qualquer outra expressão da cultura pop, ‘corporativizar’ o rock and roll que faz sem deixá-lo se tornar um produto.

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A Stones Company não vende canções novas, não faz discursos políticos, não chama convidados-surpresa e não se engaja em causas socioambientais. Mesmo as músicas mais clássicas como It’s Only Rock and Roll, que contou com um solo de Keith Richards que é um verdadeiro tributo a seu mestre maior, Chuck Berry, são tocadas com uma fidelidade religiosa e um comportamento ritualístico.

Keith sabe o que tem a fazer desde que quando tudo começa com Start me Up. Mick Jagger vai dizer as mesmas palavras em português em quase todos os seus shows no Brasil. O público de São Paulo ganhou algumas a mais: “Tô tão feliz! Beijinho no ombro!”, disse. E para todos entenderem, imitou o gesto de Valesca Popozuda (procura-se quem ensina essas genialidades para Mick). Os Stones estão na estrada há mais de cinco décadas tocando para estádios com 65 mil pessoas – como foi nesta quarta, no Morumbi – porque esmagaram seus egos, anularam seus ímpetos criativos e se especializaram em entregar toneladas de memórias afetivas.

Pode ser discutível, por exemplo, que ainda gostem de tocar Satisfaction, no encerramento, ou Jumping Jack Flash depois de tantos anos. Mas, sob a administração Mick Jagger, elas estarão lá até o último dos shows. O cliente paga, o cliente leva. Há ali um certo exercício de desapego, um pacto de não se torturarem por deixarem de fazer desafios a si mesmos e de abrirem mão de tocar lados B fenomenais de discos mais obscuros, posturas difíceis de imaginar em carreiras de outros ingleses na ativa, como Eric Clapton, Jeff Beck ou David Gilmour.

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Terrenos seguros

As mudanças também são calculadas. Durante toda a turnê Olé, que estão fazendo apenas em grandes estádios, eles colocam quatro músicas no site oficial da banda para que o fã escolha qual deve entrar no repertório. A uma certa altura da noite, os telões mostram a frase: “E a vencedora é?”. E eles anunciam: Bitch, do álbum Sticky Fingers, de 1970 (para muitos, o melhor).

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Assim, blindados contra sustos e temporais, a noite segue em terrenos seguros. O padrão que atingem é assustador. O pouco que sai do controle é um atropelo de Mick Jagger sobre as guitarras de Keith e Ron Wood durante Start me Up, na abertura, um solo sem nenhuma inspiração de Keith em Out o Control e uma engasgada que impede Mick de chegar à nota certa em Beast of Burden. No mais, não há o que corrigir na front sustentado pelo baixo de Darryl Jones, que já tocou com Miles Davis, e no piano de Chuck Level, que já gravou com o mundo do rock and roll.

Há um momento que os anos estão deixando mais emocionante. Quando Mick para o show, depois de Honky Tonky Woman, para apresentar um por um, alguns filmes se passam pela memória e o pensamento intruso se torna inevitável. Esses homens que criaram roqueiros de três gerações estão envelhecendo e talvez não voltem para o Brasil. Charlie Watts, um dos maiores bateristas de rock que empunha as baquetas como um jazzista, está com 74 anos. Ron Wood, que recebe uma ovação impressionante, tem 68. E Mick mais Keith, que lideram a cena, chegaram cada um aos 72. Cantam e tocam sua empresa como se soubessem que o tempo é curto.

A concentração de Mick Jagger é algo absurdo. Nem um ET parece poder tirar o foco de seus olhos e dos movimentos de seu corpo. A entrega de Keith e de Ron Wood em Bitch, uma música nem tão boa assim, foi arrebatadora. E o poder de Charlie em fazer um castelo com quatro tijolos e dois pratos de bateria é único.

Olhando bem de perto, enquanto tocam Paint in Black, percebe-se que os Stones, na verdade, são uma banda pequena. Uma bateria sem frescuras e duas guitarras sem pedais de distorções mirabolantes levam alguns dias para parar de soar na memória, a tal memória afetiva que o caminhão da Stones Company acabou de entregar, mais uma vez, para sempre. (Colaborou Guilherme Sobota)