Ele era conhecido como “Velho Grisalho”, por conta das fotos tiradas no fim da vida, que o apontavam como um homem grande, de vasta cabeleira e barba brancas. Mas Walt Whitman (1819-1892) foi muito mais vasto – com a reunião de poemas Flores de Relva (1855), sua obra-prima, o americano revolucionou a poesia, praticamente inaugurando o verso livre e abrindo as portas para talentos que viriam em seguida, como Fernando Pessoa e Ezra Pound.

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E, se Flores de Relva ainda é devidamente exaltado, o mesmo não se pode dizer de Dias Exemplares, bem menos conhecido mas visto como o outro lado da moeda whitmaniana, só que em prosa. Assim, torna-se particularmente bem-vinda a edição lançada agora pela editora Carambaia, aproveitando os festejos pelos 200 anos de nascimento do escritor. Trata-se de uma bem organizada seleção de anotações feitas por Whitman entre 1862 e 1882, contendo descrições, trechos de poesia em prosa, listas, pequenos ensaios, alguma consideração sobre política, retratos de personagens ilustres e pessoas comuns, cartas e citações.

“Dias Exemplares é, em termos gerais, uma obra de retrospectiva pessoal que se constrói a partir de um filtro literário muito específico, o da construção da persona poética de Whitman”, comenta Bruno Gambarotto, tradutor e autor do posfácio da edição e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. “É possível dizer que Whitman constrói uma retrospectiva a partir de circunstâncias biográficas verificáveis: a primeira metade da vida vivida (1819-1860) em Long Island e nas (então) cidades de Brooklyn e Nova York; os anos da Guerra (1861-1865), que o levam para Washington, cidade em que decide viver e trabalhar no pós-guerra até que, em 1873, sofre o primeiro derrame; e, por fim, a partida para Camden, New Jersey, onde passa a viver com o irmão George, e as viagens que passa a fazer, quase sempre acompanhado de membros de seu círculo de admiradores, que havia começado a construir no pós-guerra em Washington.”

A leitura dos textos de tamanhos variados revela o entusiasmado do escritor em relação à Guerra de Secessão, que dividiu o país entre favoráveis e contrários à escravidão negra, como um momento de edificação democrática dos Estados Unidos. É tocante a forma como o poeta constrói um retrato humano e gentil dos soldados feridos, cujo martírio tem “importância maior até mesmo do que os interesses políticos envolvidos”.

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Gambarotto identifica esta como uma das ideias mestras da construção estética de Folhas de Relva, a ideia da “América” como algo sublime. “Não é por menos que a guerra é o centro das versões finais de Folhas de Relva e de Dias Exemplares: ela representa, da perspectiva romântica e unionista de Whitman, o momento em que o grande encanto americano – a ideia da “América” em seu grande concerto de poder político e natureza – se viu em vias de desaparecer”, observa. “A celebração de sua permanência e seus desdobramentos, no entanto, se fazem infinitamente mais presentes em Dias Exemplares: enquanto a poesia final das Folhas versa sobre a morte, a prosa de Dias absorve a experiência do Oeste como renovação e apoteose da vida social e política norte-americana e revelação da grandiosidade de sua natureza.”

Questionado pela reportagem se Dias Exemplares contribui para a posição de Whitman como um porta-voz da face jovem e orgulhosa dos Estados Unidos, Gambarotto não concorda. Segundo ele, Dias Exemplares apresenta um Whitman fragilizado pela idade e pela doença e, justamente por isso, não consegue se igualar ao poeta jovem, desafiador e arrogante da década de 1850. “Nem se elevar altivo na figura do bardo americano que havia testemunhado e superado a crise e os horrores da Secessão. Aqui, o ponto de partida é um Whitman convalescente que busca a normalização de sua persona poética dentro de um percurso heroico, do qual o presente da publicação da retrospectiva é parte – afinal, o esforço de curar as cicatrizes do conflito ao lado de soldados feridos de ambos os exércitos é colocada como a razão da doença e da velhice precoce.”

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Esse percurso heroico, continua Gambarotto, preserva o jovem Whitman, que vai servir de inspiração à poesia e à prosa dos beats e à contracultura dos anos 1960. “Mas Dias Exemplares denuncia posicionamentos do Whitman final e sua adesão ideológica aos Estados Unidos do pós-guerra civil – a potência industrial e imperialista que, dominada por uma oligarquia, completa brutalmente sua expansão pelo continente ao norte.”

Para dimensionar a distância espiritual entre o escritor jovem e o depois veterano, Gambarotto exemplifica com duas imagens: em 1855, Whitman celebrou o casamento entre uma índia e um caçador americano da fronteira em Canção de Mim Mesmo; e, em 1876, ele escreveu um poema em tributo a George Armstrong Custer, oficial do exército norte-americano e figura simbólica do genocídio indígena nos Estados Unidos.

Mesmo assim, o Walt Whitman de espírito antirreligioso, aquele que tratou livremente da sexualidade (o que lhe custou mais de um emprego) e que morreu como um poeta malvestido e rebelde, esse ainda figura como porta-voz de uma nação jovem e orgulhosa.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.