Em conversa, mestra e cantora falam do Pessoa favorito

Entre os heterônimos de Fernando Pessoa, Cleonice Berardinelli jura que não tem um mais querido. Mas a professora diz que, neste momento, está lendo Álvaro de Campos, e, por isso, tende a preferi-lo. Maria Bethânia concorda. “Ele não tem limite, controle, é solto, nítido, poético. É o que mais me toca”, justifica a cantora, que inclui o autor português nos roteiros de seus shows desde que o conheceu, em 1967, pelas mãos do diretor Fauzi Arap (1938- 2013).

As duas falam de Pessoa, Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis como quem cita amigos íntimos. Para promover o DVD (O Vento Lá Fora), elas se encontraram segunda na PUC-Rio, da qual Dona Cléo, integrante da Academia Brasileira de Letras desde 2010, é professora emérita – ela tem 98 anos e orientou teses até poucos anos atrás. A conversa foi acompanhada pelo jornal O Estado de S. Paulo.

Qual o lugar de Fernando Pessoa e de sua poesia num século em que tudo é rápido demais e descartável?

Cleonice Berardinelli: O sucesso do Fernando Pessoa ultimamente tem sido tão flagrante… Basta ver as coisas que têm surgido por causa dele, para se entender a leitura dele. Tudo isso dá o valor que ele tem, comprova como é importante. Na poesia portuguesa temos um estendal de poetas, com dois mastros mais altos, que sustentam a corda: no século 16, chama-se Luís Vaz de Camões; no século 20, chama-se Fernando Pessoa.

Maria Bethânia: É o poeta da minha vida. O mundo faz muito barulho, sempre fez, mas está fazendo mais. Silêncio faz falta. Onde cabe Pessoa num momento tão poluído sonoramente? Ele cabe porque a força de um poeta é essa, a força silenciosa, é ser contra a maré. O poeta vê onde ninguém vê, fala do que ninguém está sabendo que existe. Como sou cantora, fico muito nesse mundo de DVD, tudo é DVD, tudo é muito forte, grande. Acho um oásis existir isso. É a cara do Brasil, que tem essas escapatórias, tem floresta, praias, rios de que ninguém sabe.

Então o DVD vai contra a maré?

Bethânia: Vai do jeito dele, na maré dele, remando com os remos dele. Acho estranho quando botam que a poesia é contra a maré. Acho que é algo cotidiano. Existe um DVD de leitura de poesia porque a poesia existe, a todo tempo. Mas entendo o que você está falando, parece que a gente é maluca por ter feito isso. Quando vi a professora passando de um heterônimo para outro com tanta intimidade, de um jeito tão fácil de você aprender, quis registrar. O ensino nas escolas é tão padronizado, que pensei: vamos fazer isso e colocar na escola pública.

Cleonice: Mexer em Fernando Pessoa é sempre um prazer, um prazer sentido, quase chorado. Começa que ele não é um, ele é pelo menos quatro. Me perguntam de qual eu gosto mais… É daquele que estou lendo na hora. Nesse momento, é Álvaro de Campos, porque ele é o divã de Fernando Pessoa. A pessoa deita e diz tudo que tem dentro da cabeça e do coração. Não precisa raciocinar “posso dizer? Será conveniente?” Enquanto Caeiro é oposto dele. É um senhor que não fez curso nenhum, só tem o primário. Mas, em compensação, quem entende de natureza é ele. Então diz “sou um guardador de rebanhos”, mas imediatamente diz que “o rebanho é os meus pensamentos/ e os meus pensamentos são todos sensações/ Penso com os olhos e os ouvidos/ E com as mãos e os pés/ E com o nariz e a boca”. É uma beleza, né? É o apoético por natureza: ele sente com a boca e o nariz?

E o seu preferido?

Bethânia: Sou Álvaro, tenho mania. Acho ele violento, nu, não tem limite, controle, não tem nada, é solto, nítido, poético. O que mais me toca.

Cleonice: Ricardo Reis é a profundidade do pensamento. É como se ele escrevesse versos num tempo muito anterior ao de Fernando Pessoa. É um poeta que escreveria ao tempo de Virgílio, Ovídio, Catulo, aqueles poetas latinos bem antigos. Tem versos que acho preciosos, como: “Quer pouco: terás tudo/ Quer nada: serás livre/ O mesmo amor que tenham/ Por nós, quer-nos, oprime-nos”. Se pensarmos um minutinho é um pensamento de uma profundidade… E tem um que eu acho o mais primoroso: “Já sobre a fronte vã se me acinzenta/ O cabelo do jovem que perdi/ Meus olhos brilham menos/ Já não tem jus a beijos minha boca/ Se me ainda amas por amor não ames/ Traíras-me comigo”. Perceberam? Ele está ficando velho e faz essa interpelação à amada.

Como essa experiência impactou vocês?

Bethânia: Fui gostando mais ainda do Fernando Pessoa através do conhecimento dela. Ela diz (poesia) lindamente, é uma qualidade de apresentar Pessoa raríssima. Sou uma cantora popular, interpreto…

Cleonice: Que cantora popular, o quê! É também cantora, nas horas vagas! (risos)

Bethânia: Eu tenho o Fernando Pessoa muito para mim. Sinto que ela também tem esse entendimento da poesia dele. Para ela, ele é dela. Foi muito bom ouvi-la, ela me puxar a orelha, dizer como estava bom. Eu gosto de aprender.

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