Em Cannes, Brad Pitt diz que Aquiles não era gay

Na entrevista coletiva de Tróia, o épico sobre a Guerra de Tróia dirigido por Wolfgang Petersen que tem pré-estréia de gala nesta quinta-feira numa sessão fora da competição de Cannes, Brad Pitt e o roteirista David Benioff foram questionados sobre o retrato que o filme pinta do guerreiro Aquiles como heterossexual papa-todas.

Um jornalista perguntou sobre o por que de o filme não mencionar que a forte relação fraternal entre Aquiles e seu primo era, na verdade, uma relação amorosa, “como estaria na Ilíada”.

– Isso não está na Ilíada, -retrucou Benioff – Me aponte um trecho do texto em que isso esteja expresso de forma clara. É evidente que as pessoas interpretam a Ilíada de variadas formas, mas isso nunca é apontado como fato consumado.

– A verdade é que, como já havíamos falado antes, é importante se tomar certas liberdades com o roteiro – acrescentou Pitt, deixando no ar a sugestão de que concorda com a visão do jornalista – É como Wolfgang (Petersen, o diretor do filme) disse: essa é uma história inspirada na Ilíada, não uma adaptação literal. Não dá para tratar de todos os temas ali mencionados.

Num tom filosófico que não lhe é característico, Pitt pisou com cuidado num campo minado de perguntas capciosas. Um jornalista britânico foi vaiado por repórteres de celebridades quando pediu ao astro que comparasse a guerra de Tróia ao conflito no Iraque. Escolhendo bem as palavras, ele respondeu:

– Os motivos de Homero me pareceriam razoáveis nos dias de hoje. Vemos a guerra como uma tragédia, pessoas que morrem, famílias que são destruídas. Mas na minha pesquisa, muitos estudiosos dizem que o que Homero procurava era a aceitação da humanidade.

Mas, num momento mais leve da entrevista, respondeu que tinha assistido ao último episódio de Friends, seriado que terminou na semana passada e que era estrelada pela mulher Jennifer Aniston:

– Vi sim, e foi ótimo.

Então, um repórter da Grécia arriscou perguntar como era ser casado com uma mulher de origem grega:

– Você quer que eu diga que as mulheres gregas são melhores do que as outras? Não, não. Muito perigoso. Bom em casa, ruim fora dela. Mas ele sentiu que tinha feito alguma coisa boa depois de treinar durante meses para o papel usando uma saia de guerreiro:

– Vou te dizer uma coisa: a minha mulher gostou da roupa. Minha mulher grega pediu que eu a levasse para usar em casa. Ainda não sei o por que – brincou.

Cannes inaugurou as sessões de cinema na praia à noite.

Notas de Cannes

Na quarta-feira, uma multidão se reuniu para ver o musical Hair, de Milos Forman. Hoje, o programa foi A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, que também integra a programação de tesouros restaurados, que inclui filmes de vários países cujas matrizes foram recuperadas e que agora estão zero bala para conquistar novos admiradores.

Na apresentação de seu filme La Mala Educación, Pedro Almodóvar foi recebido no palco por algumas das grandes estrelas de seus filmes. Lá estavam Victoria Abril, Marisa Paredes e Angela Molina.

Crítica: Tróia, um filme apenas para Pitt

Luiz Zanin Oricchio

Essa história faz parte do patrimônio da humanidade. Afinal, todos nós já ouvimos falar no cavalo de Tróia, já demos ou recebemos algum presente de grego, conhecemos a beleza de Helena e temos o nosso calcanhar-de-aquiles. São temas, termos e personagens associados ao cerco dos gregos a Tróia que, segundo se diz, durou dez anos, e teve um poeta à altura para imortalizá-lo e aos seus heróis.

Essa história – que inclui batalhas sangrentas, busca da notoriedade, maquinações políticas, mas também paixão, sexo e ciúmes, isto é, todos os ingredientes de um bom drama moderno, chega agora em nova versão hollywoodiana, uma superprodução de US$ 250 milhões, com um astro cintilante como Brad Pitt no papel de Aquiles.

O longa-metragem (longuíssimo, aliás, exatos 2h43 de duração), dirigido por Wolfgang Petersen, se diz uma adaptação da “Ilíada”. Em termos. A história foi bem mudada, como seria de esperar. E não em seus detalhes, mas em sua essência mesma. No mundo homérico, deuses e homens conviviam. Os deuses e deusas eram poderosos e truculentos. Intervinham diretamente nos assuntos humanos. Negociavam, brigavam entre si, davam vazão aos seus impulsos sensuais e sua inveja. O mundo de Petersen é laico. As motivações dos seus personagens são perfeitamente humanas, assim como a escala de suas lutas e batalhas. Em entrevistas, diz que expurgou a parte divina da Ilíada, pois ela não era conveniente para o tom realista que queria dar ao relato.

Esse realismo, em se tratando do cinema comercial contemporâneo, é até um alívio. Com isso se quer dizer que, apesar da coreografia das lutas e dos combates, em “Tróia” não se vai ver lutadores andando de cabeça para baixo pelo teto das casas, subindo paredes, derrotando 50 oponentes com um único golpe de espada, como se assiste em filmes como Matrix, O Tigre e o Dragão, Kill Bill e outros do gênero. Apesar do tom grandioso, paradoxalmente Tróia é mais sóbrio do que a regra. Mesmo o herói, Aquiles, é visto como um grande lutador, mas nem por isso como super-herói de histórias em quadrinhos, gênero que se tornou a matriz do cinema de ação contemporâneo.

O esvaziamento é de outra ordem. Aquiles teria tudo para ser um herói complexo. Afinal, sua situação diante da guerra é ambígua. Ele não tem o desejo de vingança de Menelau, nem a vontade de poder de Agamenon. Quer se bater pela glória, para que seu nome não seja levado pelo pó do tempo e ressoe através dos milênios, como profetiza sua mãe, Tétis (Julie Christie, ótima), numa das melhores cenas do filme. Nela, Tétis pondera que uma vida pacífica, junto a filhos e netos conduz ao esquecimento. O que se tem do filme é a grandiloqüência oca de um épico convencional, com suas cenas construídas pela computação digital e infindáveis seqüências de batalhas – no cinema, quem viu uma, viu todas.

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