Em busca da poesia perdida

“Ut musica, poesis.”

Malarmé

Permitam-me, amigos e confrades e convidados, que, neste instante, eu me aconselhe com meu oráculo predileto e invoque a proteção das divindades do Olimpo iluminado, para que ali “se ajuntem em concílio” criterioso, fazendo jorrar sobre este pobre mortal escriba a fonte da divina inspiração, para que eu possa pisar de leve “no cristalino céu formoso” e pairar de vagarinho, com a leveza da gaivota, por sobre a Via Láctea, sem atrair a ira das deusas suscetíveis.

“E vós, Tágides minhas… dai-me agora um som alto e sublimado, um estilo” talvez grandiloqüente, mas ao mesmo tempo sutil e primoroso, a fim de que não me falte “engenho e arte” para que eu possa perpassar por seara tão delicada, sem ferir a suscetibilidade latente das musas…

E assim, sob a moção de Calíope e de todas as divindades inspiradoras da poesia, as quais por certo me protegerão de eventuais maldições dos vates vingativos, pretendo discorrer, sem melindrar os deuses, sobre assunto de tal modo escrupuloso…

***

Eu, como um louco à procura da pedra filosofal, vivo à busca da poesia, daquela poesia que despertava a alma para a vida, conduzindo-a ao mundo dos sonhos. Longe vai o tempo em que a poesia se diferenciava basicamente da prosa pela musicalidade. Caminheiro incansável, encontrei, em minhas andanças pela literatura, muita poesia disfarçada de prosa, mas traída pela musicalidade. Eu disse musicalidade! Nem sequer mencionei métrica ou rima que, aliás, em meu modestíssimo entender, davam graça e personalidade à poesia de antigamente. Mas, nos dias de hoje, aquela poesia é ridicularizada por muitos e tida como “pueril”, quando não “piegas”.

Hoje a poesia perdeu sua identidade. Ninguém mais sabe o que é poesia. Fala-se, com certo desdém, nessa “desértica paisagem gráfica”, que alguns teimam em denominar poesia. Críticos literários, cheios de inventividade, penetram por esses “desertos” retóricos e os transformam em verdadeiros oásis de sazonados frutos poéticos. E essa metamorfose, às vezes, se faz de uma frase apenas, ou até mesmo de uma única palavra que, seccionada em várias partes por barras ou traços, se transforma no mais inspirado poema. Nem o próprio autor teria sido capaz de extrair de lá ilações tão sábias e de tal modo transcendentais…

Li, recentemente, uma frase tão “descarnada” – para usar a expressão do próprio crítico – que o título fazia parte integrante do “poema”. Aliás, nem poderia ser diferente, pois era uma frase de apenas cinco palavrinhas curtas, incluindo o artigo definido. Logo, dois vocábulos, o artigo e o substantivo, faziam parte do título e, ao mesmo tempo, constituíam o “poema”. Ah! Foi preciso também “cortar” a palavra “poema” (po/ema) para deixar nascer, por entre as sutilezas do verso (?), a grande ave reiforme. É, realmente, um nó apertado de palavras e conceitos… em que a inventividade dos críticos faz extrair termos e sinais gráficos “implícitos”, a fim de encompridar o minúsculo poema um pouco mais.

Onde será que se esconde, hodiernamente, a poesia de outrora? No misérrimo fiapo de palavras ou no hermetismo impenetrável de sua linguagem? Ou, quem sabe, no microcosmo de sutis perplexidades?

Ouvi ou li em algum lugar que o vate só consegue poetar quando está repleto de Deus. Quando sua alma está transbordando de inspiração divina, só então, levitando, em pleno êxtase, entre o céu e a terra, é ele capaz de celebrar o milagre do poema, é ele capaz de produzir a “santa faísca” da poesia! Então, o que está acontecendo com os poetas de hoje? Suas almas estariam vazias de divindade?

Podem pichar-me, ridicularizar-me, podem escarnecer de mim! Que posso eu fazer, se não consigo vislumbrar poesia nessas imagens de concretude, que apregoam o antilirismo e ironizam o romantismo, objetivando apenas chocar o leitor e impressioná-lo com um espetáculo meramente visual, geométrico e enigmático!

Ó musas minhas, deusas do etéreo assento, acaso fostes vós que, iradas, escondestes – para castigar a vaidade humana – o fogo sagrado da poesia? Vós, que inspirastes Homero, Vergílio, Camões, Bilac, Castro Alves e, mais recentemente, Fulano e Sicrano… por que silenciastes por tanto tempo o estro dos homens? Por que, ao menos, não me ensinais a compreender esses “versos brancos”, esses “versos de pé quebrado”? Será que Camões e Bilac os entenderiam?

Ó inomináveis poetas modernosos, de indecifráveis versos monossilábicos! Valham-me todos e, se puderem, perdoem-me a ignorância por não conseguir apreciar seu trabalho. Desgraçadamente, por mais que, aflito, eu procure, menos acho a centelha divinal na obra de vocês!

Enfim, àqueles que zombam de minha falta de argúcia para penetrar a essência do enigma de seus versos, lembro as palavras de Dante Alighieri: “Poesis est fictio rhethorica in musica composita”. Sim, senhores, “in musica composita!” Portanto, posso até abrir mão da métrica e da rima. Mas – por Deus! – não me peçam para dispensar, na poesia, a musicalidade.

Senão,

poe-

sia

não

é!

FINAL

…E agora, ó deuses e semideuses do etéreo assento! Ó ínclita deusa Têmis! Não recuseis vossa proteção a este indefeso escriba, que ousa revelar seu estro. E não permitais que a ira dos vates ressentidos recaia sobre este mortal que imprudentemente os desafiou, pois, na verdade, eventual semelhança destes fatos com os da vida real terá sido mera coincidência, porque buscados nas fontes longínquas da mitologia. E, ainda que assim não fosse, faço minhas as palavras daquele célebre economista: “JE NE SUPOSE PAS; JE NE PROPOSE PAS; J’EXPOSE!” Não supus, nem mesmo propus nada. Apenas, expus…

Albino de Brito Freire

proferiu esta palestra na Academia Paranaense de Letras, na sessão de 19 de novembro de 2002.

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