É tempo para conferir o filme de Walter Salles Jr.

Parece destino inevitável de Diários de Motocicleta ser percebido como rito de iniciação política de Che Guevara. No entanto, esse mecanicismo biográfico tende mais a reduzir que a enriquecer a leitura do filme.

Certo, há mais do que mera inquietação juvenil nesse fato de sair pela estrada com pouco ou nenhum dinheiro no bolso, a bordo de uma moto antiquada, que apenas o senso de humor poderia batizar de La Poderosa. No caminho, a dupla vê muita coisa. Convive com a dificuldade material e pode observar como os pobres e os índios costumam ser tratados na América. É, de fato, uma viagem de iniciação, mas sem nenhum proselitismo político. Aliás, o que mais emociona no filme de Walter Salles é exatamente a sobriedade, a maneira, digamos assim, não “ideológica” como trata essa fase de juventude do futuro guerrilheiro.

A história é menos linear. Ernesto Guevara de la Serna, então um estudante de medicina de 23 anos, e seu companheiro de estrada, Alberto Granado, um bioquímico de 29, saíram da Argentina tomando o rumo do Sul e ingressaram no Chile pela Patagônia. Subiram o país, entraram no Peru e chegaram até a Venezuela, quando terminou a viagem da dupla. Granado ficou por lá e Ernesto voltou a bordo de um avião de carga (transportador de cavalos de corrida) que fez escala em Miami antes de voltar a Buenos Aires.

O filme que Walter Salles tira dos dois relatos – o de Ernesto Guevara e o de Alberto Granado – aponta para alguma coisa além dessa trajetória. Como Salles tem dito com freqüência em entrevistas, surge desse road movie uma dupla percepção dos dois personagens principais, mas de Ernesto em particular: primeiro, ele intui que existe uma unidade cultural da América Latina, em especial aquela que ele percorre, a de colonização hispânica. Segundo, que há outro fio ligando povos e que atravessa fronteiras – a imensa disparidade social.

De modo que Diários de Motocicleta se instala nessa situação dupla. Sabemos que se trata do futuro Che, mas no momento ele não é o Che, nem sequer um proto-Che, por assim dizer. Como nada é explícito, ou forçado, o cineasta evitou a todo custo as referências icônicas óbvias, como seria, por exemplo, vestir o personagem com a boina que faria parte do modelito consagrado de Che Guevara a partir da foto famosa de Alberto Korda.

Mas, de qualquer forma, Ernesto e Alberto não são dois mochileiros típicos. Destinam-se a um leprosário no Peru, onde ajudarão no atendimento aos doentes e onde acontecem algumas das cenas mais interessantes do filme. E aí sim, temos a presença de atos simbólicos humanitários, como quando os dois se recusam a vestir luvas de borracha para cumprimentar os enfermos.

Júri divide prêmio no Festival de Recife

Nos últimos anos, tem sido tão freqüente ver o júri de Recife descarregar a maioria dos prêmios num só filme – Bicho de Sete Cabeças, O Invasor e Narradores de Javé -, que causa certo estranhamento ver o resultado da oitava edição do festival, encerrada na quarta-feira à noite. O júri do 8.º Cine PE – Festival do Audiovisual, integrado, entre outros, pelos diretores Vladimir Carvalho e Rosemberg Cariry e pela atriz Virginia Cavendish, dividiu os prêmios principais entre os favoritos – O Outro Lado da Rua, de Marcos Bernstein, ficou com o Calunga de melhor filme, mas o de direção foi para Roberto Moreira, de Contra Todos.

Nada mais justo – com Moreira, principalmente. Seu filme é fascinante, como proposta estética. A maneira como o diretor desenvolveu a dramaturgia, como criou o set e trabalhou com os atores, tudo isso é interessante, mesmo que o resultado final de Contra Todos, que é o que chega para o público, não seja 100%. Comparativamente, o desenho dos personagens de O Outro Lado da Rua é mais sincero e convincente. O júri reconheceu isso premiando Fernanda Montenegro como melhor atriz. Outra surpresa é o Calunga de melhor ator para Giulio Lopes – o personagem dele o pastor assassino, é talvez o mais discutível de Contra Todos, o que é mais um problema de roteiro e realização do que do ator, evidentemente.

Tão feérica foi a sessão de Como Fazer um Filme de Amor, com aplausos em cena aberta e uma ovação estrondosa no fim, que fica difícil entender por que o filme de José Roberto Torero não recebeu o Calunga como preferido dos espectadores. Levou o prêmio de roteiro, dado pelo júri. O prêmio de público foi para Garrincha – Estrela Solitária, de Milton Alencar Jr., que obteve 25% dos votos. Tomara que repita o sucesso do Recife nos cinemas de todo o Brasil, mas será um daqueles casos de divórcio irremediável entre público e crítica.

O júri premiou a montagem de Viva Voz, de Paulo Morelli, e deu ao documentário Mensageiras da Luz – Parteiras da Amazônia, de Evaldo Mocarzel, seu prêmio especial. Em oito anos, o Festival do Recife consolidou-se como um dos mais importantes do País, principalmente pelo calor de seu público.

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