Dorival Caymmi completa 90 anos em grande astral

Se você quiser homenagear o compositor Dorival Caymmi hoje, dia em que ele completa 90 anos, saia cantando Acalanto, a canção de ninar que ele fez para a recém-nascida Nana, sua filha. “Fiz essa música quando ela era pequena, ficava no colo da mãe, a minha Stella, lá na nossa casa no Grajaú (bairro da zona norte do Rio). É a que gosto mais”, contou ele, na última quarta-feira, em sua casa, em Copacabana, na zona sul do Rio.

Amigos, admiradores e fãs (certamente todos os brasileiros) não precisam pensar em presente. “Não pedi nada porque tenho muitas restrições médicas, mas aceito uma flor”, completou. “O maior presente da minha vida foi essa moça bonita, Adelaide Tostes, nome de batismo da conhecida cantora Stella Maris, que largou tudo para ficar comigo até hoje.”

Dorival Caymmi contou também que não esperava chegar aos 90, pois há dez, quando completou oito décadas de vida, achou que já tinha recebido todas as homenagens possíveis. Mal sabia ele que os filhos discordavam e prepararam mais uma, o disco Para Caymmi, de Nana, Dori e Danilo, lançado há um mês e que amanhã (30) vira show (com direito a gravação de DVD) no Canecão. “Foi o maior presente que recebi neste aniversário. Meus filhos já cantaram juntos muitas vezes, comigo, com Tom e Vinícius, mas este foi especial, só para mim. E ficou lindo”, elogiou o compositor, famoso por não ser dado a jogar confete levianamente. “Não sou rigoroso nem fico elogiando tudo e todos. Digo o que sinto de verdade e esse disco me deixou feliz.”

Tão feliz que ele até planeja aparecer no Canecão, no Rio hoje, quando Nana, Dori e Danilo, seus três filhos, e os sambistas cariocas escolhidos a dedo por eles, tocarão os 20 sambas gravados, mais os sucessos que todo mundo exige. “Vou tentar estar lá, pois é uma aventura ter os três filhos juntos aqui no Brasil, no dia do meu aniversário.”

Por causa do show, o aniversário não será comemorado hoje em família, embora os Caymmis sejam unidos, quase um clã. Reunir os três filhos, sete netos e quatro bisnetos em casa é corriqueiro para Stella e Dorival, que se orgulham do tempo em que vivem juntos. “Sessenta e quatro anos”, enfatizou ela, antes de chamá-lo e pedir que a conversa seja breve. Quando lançou o disco com músicas do pai, Danilo contou que, apesar de os sambas deles fazerem a trilha sonora da vida de todos nós, pouco são cantados em família. “A gente ouve de tudo nas festas lá em casa. No último Natal, teve até Kelly Key e o papai chegou a dançar.”

Caymmi é mesmo um caso raro de sucesso rápido e duradouro. Filho de um funcionário público e músico amador, ele veio de Salvador para o Rio em 1938 tentar a vida. Já conhecia o êxito como compositor, pois dois anos antes, vencera um concurso de marchas carnavalescas com “A Bahia também Dá”, mas música não era considerada profissão naquela época. Trabalhou na imprensa como ilustrador, mas logo agradou a Carmem Miranda, estrela máxima de então (a quem ensinou a ser brejeira, vestir-se de baiana e revirar os olhinhos, de um jeito que se tornou sua marca registrada), e Assis Chateaubriand, poderoso dono de emissoras de rádio, cantando “O Que É Que a Baiana Tem?”. Aí não parou mais. Fez rádio, shows, cinema (foi um dos primeiros galãs brasileiros fora do padrão europeu) e, principalmente, conheceu a cantora Stella Maris, com quem se casou em 1940.Um mar de histórias sobre a Bahia

Lauro Lisboa Garcia

São 90 anos de contemplação do século do progresso, que de revolução em revolução deixou para trás uma legião de contemporâneos que nem de longe chegaram à idade dele: Noel Rosa, Assis Valente, Lamartine Babo, Vinicius de Moraes. Dorival Caymmi é o último patriarca vivo da música brasileira. Em 26 anos de vida, Noel deixou mais de 200 composições. Caymmi até agora fez 120. Acontece que ele é baiano.

Acontece que ele não é só baiano. De forma universal também cantou o amor cheio de melancolia de forma que só louco amaria. De um jeito brasileiro, distinguiu personagens em soluções inspiradoras, como a tocante João Valentão que a todos parece encantar .No livro Dorival Caymmi: o Mar e o Tempo (Editora 34, 632 páginas, R$ 75), de leitura fundamental, escrito pela neta Stella Caymmi, Dorival relata o seguinte: “Eu tinha achado: ?E assim adormece esse homem, que nunca precisa dormir pra sonhar, porque não há sonho mais lindo que sua terra, não há?. Depois, veio um contestador: ?Por que não diz sua vida??. Eu fiquei entre vida e terra muito tempo, na dúvida. Aí achei que terra abrangia melhor, encorpava melhor, adocicava melhor a coisa, o pé na terra. E aí eu elogiava essa terra toda.

Acontece que ele é de mar. Em 1938, quando desembarcou no Rio de Janeiro, trouxe na bagagem canções incompletas que terminou nas andanças noturnas pelo centro, segundo conta Stella na biografia do avô. Ele é o poeta da ginga, expressada em tantos sambas sensuais pelos quais tornou-se precursor da bossa nova. A Vizinha do Lado continua aí a mexer as cadeiras para lá e para cá.

Dono de uma obra irretocável, dentro de uma tradição é rigoroso com cada verso, cada sílaba na conversa com a melodia. Tem graça como ninguém. Há quem, como o conterrâneo Antônio Risério, autor do ensaio “Caymmi: Uma Utopia de Lugar” (Editora Perspectiva, 1993), proponha combater o mito da espontaneidade em torno da criação de Caymmi. “O coloquialismo caymmiano costuma obscurecer o fato de que Caymmi é um artesão verbal consciente e paciente, como se o coloquialismo não fosse uma questão de estilo, ou como se a ?espontaneidade? não fosse uma questão de método. Caymmi, leitor de García Lorca, não levaria às vezes dez anos para compor uma canção. Escreveria um poema por dia. Caymmi é cristalino, coloquial, mas nunca desleixado”, analisa. No caso, bons exemplos em que os versos prosaicos revelam-se extremamente poéticos estão em “Rosa Morena”, “Dora”, “Vestido de Bolero”.

Oportunamente, a gravadora EMI relança agora a caixa “Caymmi Amor e Mar”, com sete CDs reunindo todos os álbuns-solo do cantor e compositor na gravadora, além de preciosas faixas-bônus. O melhor é “Caymmi e Seu Violão”, de 1959, a beleza na melhor síntese. Tudo clássico. Bem disse Vinicius de Moraes ao apresentá-lo no histórico show de 1967 na Boate Zum Zum: “Ouçam como é lindo ele cantar sua poesia/ Que melancolia/ Ai, que saudade eu tenho da Bahia.”

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