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‘Dona Josefa’ resgata personagem esquecida da Revolução Liberal de 1842

O trecho inicial de Dona Josefa, o novo livro de Ana Luisa Escorel, foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 2014, mas o livro só ficou pronto agora. “O que me interessa ao escrever uma história não é a trama, a estrutura da narrativa nem a construção da verossimilhança de cada personagem, mas a fluência, a sonoridade e o ritmo do texto”, explica – e isso demanda tempo.

Filha de Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza, Ana Luisa venceu o Prêmio São Paulo de Literatura com seu primeiro romance, Anel de Vidro (2014), mas há muitos anos mantém um trabalho reconhecido na área do design, e há mais de 10 administra sua editora, a Ouro Sobre Azul.

Sobre Dona Josefa, ela respondeu às seguintes perguntas por e-mail.

Existe um salto temático entre Anel de Vidro (casamento) e Dona Josefa (revolução). A vontade de escrever sobre um tema dessa natureza foi reflexo das alterações do campo político nacional?

Quando o livro começou a ser escrito, em dezembro de 2014, o quadro político no Brasil era outro e, embora já inquietante, não parecia indicar um descalabro das proporções do que está ocorrendo. Mas, ainda que a escolha do tema não tenha sido provocada por causas desse teor, o interesse pela presença de uma senhora com o perfil de Josefa Carneiro de Mendonça em um movimento de contestação ao poder do império, de fato antecipava a ocorrência de questões políticas, ao longo da narrativa. Na verdade, o estímulo para escrever o romance surgiu das circunstâncias particularíssimas dessa oligarca – salvo engano a única no Brasil, em seu tempo – que, envolvida numa resistência armada a d. Pedro II foi presa, posta em uma solitária por dois meses e meio, num país que tem como hábito e tradição passar ao largo das irregularidades cometidas pelas classes dominantes, tendendo, ao mesmo tempo, a esvaziar a palavra e o gesto das mulheres de qualquer categoria social, tanto na esfera privada, quanto na esfera pública.

Na sua visão de escritora, a literatura e o trabalho de edição de livros precisam ter algum papel na discussão sobre as questões contemporânea do País?

Um editor consciente tem sim, na minha maneira de ver, o encargo de pôr para circular textos – literários ou não – que ampliem a visão do mundo, de modo geral, a compreensão dos fatos contemporâneos, em particular. Já ao escritor cabe, antes de tudo, o compromisso de atender à sua necessidade de expressão, produzindo o melhor texto de que for capaz para dar forma a essa necessidade.

Você considera que esse tipo de resgate histórico por meio da ficção ganha outro significado quando estamos falando de mulheres como Josefa, já que, de maneira oficial, a história sempre foi centrada na ação dos homens, dos chefes e dos comandantes?

Josefa não é uma personagem histórica relevante. Sua ação foi circunscrita, embora extremamente original e surpreendente, consideradas as condições que encarnava. No entanto, dela não se desprendeu nenhuma grandeza substancial que tivesse o poder de influir no curso da história. Mesmo admitida sua liderança incontestável no movimento, na região do Araxá, em Minas Gerais, de que resultou a Revolução Liberal de 1842, liderança completamente improvável em uma mulher com a inserção social que ela tinha, no tempo em que viveu. No entanto a colocação da pergunta faz todo sentido se pensarmos que homens com desempenhos equivalentes ao de Josefa, e portanto também pouco relevantes para o curso dos acontecimentos em qualquer país, são mencionados nos registros históricos com frequência.

Não se nota na personagem uma inspiração tipicamente abolicionista. Você acha que esse é um tipo de “falha histórica” dos liberais progressistas no Brasil? Quero dizer, não lutar necessariamente contra a escravidão.

A Josefa real provavelmente não foi uma abolicionista embora, considerando o pouco que se tem dela, qualquer afirmação nesse sentido seja temerária. A Josefa personagem, no entanto, foi desenhada como sendo uma proprietária rural rica, inteligente, personalidade incomum comprometida com o aumento contínuo de seus bens e que via os escravos como cabedal precioso cuja integridade, por isso mesmo, era necessário preservar. (…) Devo confessar que, ao escolher o tema desse meu novo romance, não previa que a presença subterrânea e contínua de certos aspectos da escravidão, tal como se deram no Brasil, ocupassem o espaço que vieram a ocupar em Dona Josefa. Esses aspectos foram se impondo naturalmente e aos poucos, à medida que a narrativa progredia. Sendo assim espero ter dado, ao tratar deles, a dimensão infame que a sociedade brasileira carrega pelo fato de tê-los permitido e de não ter sabido lidar com suas consequências – assustadora e numerosamente concretas – até os dias atuais.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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