Do amor e outros demônios

O AMOR E SEU PESO

Segundo uma antiga lenda da Pérsia, no princípio era o Nada e querendo o Deus preencher o Nada, criou para tanto o Amor. Há na rica literatura pérsica todo um hinário, alguns de luxuriante beleza, só para dizer do Amor a sua concretude. Não têm, os persas, o Amor como um “ato” abstrato, um sentimento, ou coisa que o valha. Não, para este que é um dos povos mais antigos da Terra, o Amor é real como a montanha que daqui se vê ou as pedras sobre as quais os peregrinos se sentam, exaustos das longas caminhadas.

Tanto assim é que quando um estrangeiro chegava a Persépolis, a antiga capital do império persa, logo à entrada da cidade os soldados costumavam perguntar o que o forasteiro trazia na bagagem. E se ele, como sói acontecer, respondia que trazia na bagagem Amor, os soldados corriam a seus pertences com o fito de pesá-los em grandes balanças, a que denominavam adashes. E, conforme o resultado da pesagem, deixavam ou não que o forasteiro adentrasse os portões da velha metrópole.

Calcula a lenda que de mil forasteiros, novecentos e noventa e nove entravam na cidade sem problemas – apenas um acabava ficando de fora por não apresentar, na bagagem, sequer um miligrama de Amor. E a este ser oco de si, infinitamente mais vazio que leve, chamavam de eliasheu, que no persa antigo quer dizer “pesado como o demônio”…

O AMOR E SEU LUGAR

Os índios do Chaco paraguaio têm um lugar bem preciso para o Amor – o Amor fica no coração, e, no sonoro guarani que lhes marca a língua desde as origens, ele se chama taihú.

Quando mordidos pela paixão mais enlouquecida, os índios usam enfurnar-se nas matas dias e dias até que o sentimento incômodo desapareça de vez e completamente. A paixão não é, para eles, taihú, mas o seu exato oposto. Taihú faz a criança adormecer ao regaço da mãe; taihú leva um homem e uma mulher a viver juntos por muitos e muitos anos, com os filhos crescendo em torno; taihú é a mão suave do destino criando a vida no coração feito ela fosse um passarinho.

Denominam, os guaranis, de mburucuyá, aos apaixonados de toda sorte – e costumam ter muita piedade da tragédia sentimental que estes encarnam, pois a paixão não tem lugar no corpo. Tanto pode fazer doer a cabeça quanto impedir que as pernas andem com a mesma desenvoltura.

Nem beijos nem abraços – a paixão é doença que tem de ser curada para daí, quem sabe, não mais existindo, o Amor alcance o seu lugar de origem – o piañe’á (coração) e possa, então, acontecer o que chamam a festa de todos os sentidos, que é nada mais, nada menos que as batidas do coração amoroso – pi’atitii, pi’atitii, pi’atitii.

Barulho que, segundo os índios, cessa apenas com a morte ou deixa de existir no coração destroçado pela paixão amorosa. Há de sempre bater no lado esquerdo do peito o Amor como uma graça encantada, a chama da vida ou a sua mais elevada essência. Só a alma passionária, deslocando o Amor de seu sítio de origem, não permite que o coração cante – pi’atitii, pi’atitii, pi’atitii… e faça brotar das árvores a flor serena da pocunã noturna – a mesma que leva os homens montados à canoa do sono até o alvorecer do novo dia.

Por isso, os índios do Chaco paraguaio, na paz ou na guerra, renovam a cada manhã – “Se amanece, nos vamos”…

E desse modo costumam encarar o dia com desassombrada desenvoltura.

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