Diretor Eric Lenate também integra elenco de ‘Fim de Partida’

Ao perguntar para um artista qual a razão de se levar para o palco determinada obra ou clássico, por vezes a resposta será: “porque ela é muito atual”. Mas nada disso funciona com o dramaturgo Samuel Beckett (1906-1989). A figura de uma mulher enterrada até o pescoço, falando de sua rotina em Dias Felizes ou a jornada dos viajantes em Esperando Godot não parecem peças que retratam “atualidades”. A questão que surge é curta: “Por que montar uma peça de Beckett?”.

Nesta quinta, 2, o diretor Eric Lenate voltou com Fim de Partida no Sesc Pinheiros. A montagem fez curtíssima temporada durante o Cultura Inglesa Festival, no ano passado. A narrativa absurda concebida pelo dramaturgo irlandês confina quatro sujeitos no que parece ser um abrigo pós-apocalíptico. No palco, o diretor também interpreta o velho ranzinza Hamm, ao lado de Rubens Caribé, no papel de Clov, seu serviçal. “É importante montar Beckett porque ele pertence a tempo nenhum”, explica o diretor. “Ele foi capaz de escrever com uma mão cirúrgica sobre o sentido e a falta de sentido das coisas.”

Na história, Hamm é cego e paralítico e Clov não pode se sentar. “Acho que é uma pulga”, diz Clov ao se coçar. “Uma pulga! Ainda há pulgas?”, pergunta Hamm. “Mas a humanidade poderia se reconstituir a partir dela! Pegue-a, pelo amor de Deus”, continua. O quadro se completa com os pais de Hamm, Nagg e Nell, interpretados por Ricardo Grasson e Miriam Rinaldi. Os dois velhinhos estão metidos em duas latas de lixo e ficam implorando ao filho por comida, diga-se, biscoitos e caramelos, ou o que sobrou na despensa trancafiada por Hamm. Enquanto nada acontece, o par relembra histórias de quando ainda tinham pernas.

“A família é o berço da loucura”, diz Miriam, que não esteve na montagem original. “Beckett cria diálogos que expressam exatamente o que os personagens querem dizer. Não existe um subtexto ou algo implícito”, conta a atriz. Essa relação de dependência se aprofunda, de maneira realista, na relação de Hamm e Clov. Lenate utiliza um par de lentes de contato para simular a cegueira do personagem. “Enxergo tudo leitoso e isso me dá uma dependência do Caribé no palco.”

Junto com a necessidade do outro, surgem os espinhos da relação. Em vários momentos, Hamm oprime o companheiro de abrigo com palavras duras. “Um dia você estará rodeado pelo vazio do infinito, nem todos os mortos de todos os tempos, ainda que ressuscitassem, o preencheriam e, então, você será como um pedregulho no estepe.” Todos esses diálogos crus podem gerar as mais diversas reações na plateia. O incômodo diante do obscuro absurdo escrito pelo irlandês também pode dar lugar ao riso. O diretor britânico Peter Brook já disse que quem ataca o dramaturgo por ser pessimista em suas peças acaba se transformando em um de seus personagens, presos em uma típica cena de Beckett. “Ao mesmo tempo em que o autor parece não ter nada, ele te entrega tudo. É a arquitetura das coisas indizíveis”, conta Lenate. E o grande desafio, para além de saborear o texto são as maneiras de levá-lo ao palco. O diretor defende que o silêncio é primordial para concretizar essa ambientação. “Beckett se preocupou em não dizer muitas coisas. Por isso, o texto é tão preciso. O espaço entre uma fala e outra tem que ser calculado de maneira milimétrica.” Para isso, ele ressalta que metade do esforço fica por conta dos artistas. “E o público também precisa trabalhar. Nós oferecemos de um lado, eles recebem e nos devolvem. Tudo pode acontecer com Beckett. E ele é fascinante por ser, justamente, incapturável.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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