Depressão, cura e coletividade

Um dos temas que mobilizam consultórios médicos, psiquiátricos, psicanalíticos, igrejas e romarias é a cura. Grande parte das pessoas tem algo para curar em seu corpo ou em algum lugar de sua subjetividade que não conseguem transmitir em palavras, algo que pode se chamar, por exemplo, depressão. A depressão representa pesada carga à sociedade por situar-se em quarto lugar dentre as causas mais importantes das doenças. Até 2020 é previsto pela Organização Mundial da Saúde que a carga da depressão subirá a 5,7% da carga total de doenças. (Relatório das Organizações Unidas sobre saúde mental no mundo, 2001.)

"Ver-se incapacitado para amar e desinteressado pelo que está ao seu redor; considerar-se pobre e mesquinho, inibido para a realização de atividades, sempre à espera de uma punição; sentir diminuição do apetite, agressividade, desinteresse sexual; ter sono conturbado e uma espécie de vazio, e não conseguir elaborar a perda que faz o vazio, são manifestações da depressão", explicou-me em entrevista Célio Pinheiro, psicanalista, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na UFPR – Universidade Federal do Paraná, ministrante de palestras e cursos de psicanálise.

Pinheiro explica que "Freud concebe a depressão como reação a uma perda de natureza ideal, como se algo, que tinha uma função psíquica importante, se perdeu e só ficou o vazio e a angústia naquele lugar", e lembra que "inconscientemente, há uma participação subjetiva na produção de um quadro depressivo. É como se a depressão fosse ou exercesse uma vingança, ou seja, o que alguém poderia fazer contra aquilo que ocasionou a falta ou o vazio elas fazem em si próprias".

Além da definição de perda de natureza ideal de Freud, Pinheiro amplia o sentido da depressão. Encara-a ainda como perda ideal, mas os ideais tomam outros sentidos, como perdas de projetos de vida, de carreiras, de constituição da família e, o que considera grave, a perda do corpo. O corpo passa a ser apenas o local onde o prazer imediato tem que se produzir a qualquer preço. É essa busca desenfreada pelo prazer quase tóxico que não permite ao corpo ser enredado numa história significativa. "A virtualidade, que privilegia o mundo visual em detrimento do corpo e das sensações, desacostumou o corpo a aparecer de forma sensível e historicizada e a ter de responder a partir de si. Uma das conseqüências é que o sujeito cai na armadilha do imaginário que faz parecer que o outro é feliz. Quanto mais o sujeito pensa que o outro é feliz, mais faz ressaltar a própria infelicidade, sua fragmentação, seu fracasso no ?impossível? projeto de ser feliz. É contra essa armadilha imaginária que o sujeito precisa criar as condições de relativizar, é contra a crença nesse projeto do Prazer Absoluto que o sujeito precisa lutar", disse o psicanalista.

Na tentativa de preenchimento do vazio, alguns procuram médicos e utilizam os medicamentos por eles receitados. O antropólogo Rogério Lopes Azize (2004) observa que a indústria farmacêutica, hoje, não promete somente o combate das doenças, mas também a manutenção da "qualidade de vida" pela química.

Outros buscam o aconselhamento ou a psicanálise. Preferem, conforme o psicanalista Benilton Bezerra (apud, Notícias do Brasil, v. 56), as palavras para a realização da cura, pois: "se damos uma substância química atingimos seu cérebro. Porém, se usamos palavras, também".

Há, ainda, aqueles que contam com o apoio de seu grupo social, no qual o corpo físico é percebido. Lévi-Strauss, ao introduzir a obra de Marcel Mauss Sociologia e antropologia, diz que as possibilidades do corpo humano são espantosamente variáveis segundo os grupos. "Os limiares de excitabilidade, os limites de resistência são diferentes em cada cultura. O esforço ?irrealizável?, a dor "intolerável?, o prazer "extradordinário? são menos função de particularidades individuais que de critérios sancionados pela aprovação ou a desaprovação coletivas. Cada técnica, cada conduta, tradicionalmente aprendida e transmitida, funda-se sobre certas cinergias nervosas e musculares que constituem verdadeiros sistemas, solidários de todo um contexto sociológico" (Lévi-Strauss, 1974).

E, no texto O feiticeiro e sua magia, Lévi-Strauss (1996) aborda três aspectos que implicam na cura do doente: a crença que o próprio feiticeiro (que poderia ser também um médico, um psicanalista, etc.) tem em suas técnicas, a crença do doente na cura do feiticeiro e a confiança da opinião coletiva nos poderes mágicos da cura.

Quem, exatamente, realiza a cura, então?

O psicanalista Juan-David Nasio (1999) lembra que Freud gostava de usar o aforismo do anatomista Ambroise Paré: "eu o trato, Deus o cura", e que Lacan poderia ter dito: "Eu o escuto, e a psicanálise o cura… por acréscimo?. Nasio faz uma ponte entre o que diz Lacan e o que diz Freud: "A eliminação dos sintomas de sofrimento não é procurada (pelo terapeuta) como objetivo particular, mas, sob a condição de uma conduta rigorosa da análise, ela ocorre, por assim dizer, como benefício anexo?. (resenha de Cunha Arantes, 1999).

Pinheiro diz que "esse benefício adicional que é a cura em psicanálise não deve ser entendido como uma falta de perspectiva por parte do analista quanto à condução de um tratamento". E refere uma citação extraída do próprio Lacan no seu Seminário, livro 10, sobre a Angústia: "É certo que nossa justificação, assim como nosso dever, é melhorar a situação do sujeito (paciente). Mas afirmo que nada é mais instável, no campo em que estamos, do que o conceito de cura".

Além de um profissional confiar em si mesmo, ao receitar remédios ou na escuta do paciente, a cura envolve o trabalho individual de quem a busca, pois ela "poderá vir se houver um espaço onde o sujeito possa falar, ser escutado, e o mais importante, escutar-se", afirma Pinheiro. E há também o papel social ou a opinião coletiva, como ressaltou Levi-Strauss, que contribui ao crer na possibilidade da cura.

O psicanalista Célio Pinheiro, que ministra o curso De Freud a Lacan, um percurso pelos conceitos da psicanálise, a partir de 15 de março até dezembro de 2006, em Curitiba, explica que "o curso desenvolve, entre outros diversos temas, neurose, melancolia, sexualidade, agressividade e como a psicanálise dialoga com outras ciências". (Informações, fone: 41 3339-8084).

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestranda em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná zeliabonamigo@terra.com.br

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