Dalton Trevisan, poeta lírico

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Começo por revelar um segredo. Em surdina. Confidencialmente. Qual é ele? Este: há um poeta oculto em Dalton Trevisan. Mais: um poeta lírico.

Tentarei demonstrar a tese equacionada no parágrafo anterior. A verdade é que, por sob o tecido epitelial de uma prosa que vai do ácido ao agreste, e aqui e ali ostenta inconfundíveis asperezas de lixa, o poético como que explode, numa reverberação irisada. O poético funciona como espécie de contraponto (lírico) para uma atmosfera carregada de eletricidade. Sem esse contraponto, que equivale a um relâmpago flamejante de descarga elétrica, a atmosfera dos contos daltônicos se tornaria quase irrespirável.

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Alguns trechos breves de um livro escolhido ao acaso, Crimes da paixão, nos darão a medida exata do “modus operandi” do contista. São fragmentos emblemáticos equivalendo a oásis plantados no meio de um deserto abrasador.

Primeiro exemplo: “João esquentava a mamadeira da filha e soluçava de saudade – o pungente aroma de maçã verdoenga no fundo da gaveta”. A imagem final é francamente poética – e lírica. Há nela a tensão surda, pulsa nela o espasmo subterrâneo que cria a “poiesis”. No próprio plano puramente verbal essa tensão se faz presente: a adjetivação de aroma – pungente – é típica da manipulação que o poeta realiza em seu laboratório. Sem esquecer que “pungente aroma de maçã verdoenga” é um decassílabo perfeito. Mas isso é detalhe. Sabemos muito bem que a poesia moderna superou há muito o rigorismo da métrica tradicional, opondo-lhe, com muito maior eficácia, uma espécie de ritmo interior.

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Vejamos outros exemplo marcante: “A velha maníaca por flores. Toda a casa um jardim perfumoso: nas asas douradas do sol zunia abelhas, borboletas, colibris. As violetas da janela, quem lhes dará carinho e água na boca?” Duas frases de realismo nítido elaboram plasticamente um certo ambiente. E mesmo a adoção do adjetivo “perfumoso”, ao invés de “perfumado”, já envolve (e denuncia) uma consideração prévia subjacente na arquitetura poemática. Mas é na terceira frase que a dimensão poética transparece de modo mais cristalino, além de constituir-se num autêntico “achado” metafórico através do qual o leitor, que vinha navegando nas águas mansas e tranqüilas do real, é bruscamente arremessado no espaço da indagação lírica.

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Mais lirismo exuberante e colorido: “Ó rosa, ó petúnia, ó lírio que perfumam no escuro o quarto vazio – para ninguém!” A invocação das flores é seguida do desamparo da solidão. E o “para ninguém” possui algo de trágico e irremediável. Há nele o sabor pungente de um verso de Rilke ou de Montale. Ou mesmo do clássico “não sou ninguém!” do garretiano “frei Luís de Souza”.

Outro exemplo definitivo? “Copo na mão, celebrou o barco bêbado de papel que era ele mesmo, na viagem sem fim ao fim da noite, fazendo água e ardendo em chamas, assombrado por hipocampos voadores e pontões vermelhos de olho fosforescente”. Quem não sentirá nessa passagem o sopro ardente da poesia, e não estabelecerá um paralelo com alguns versos da extraordinária Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima?

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Mais um flagrante de lirismo extremo: “Na tarde tão quieta o doce canto da corruíra”. Outro mais: “No olho azul o brilho do sol la fora”. Outro ainda: “Nos relinchantes corcéis de sonho galopam os pequenos alunos com gritos de guerra”.

E os exemplos poderiam continuar “ad infinitum”. “Surge a mocinha loira – cara levada e vestido vermelho. Dentre todas a única de vestido – não é macieira coberta de botão e ressoante de abelha?” Um rosário de metáforas transfiguradoras. Aqui, o próprio uso do singular – botão, abelha – quando o plural poderia parecer mais natural, reflete uma contenção verbal que está na raiz do fazer poético.

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Na própria auto-crítica (leve, translúcida) do poeta (perdão, do contista), surge uma dose daquele tipo de lirismo existencial que ilumina a grande poesia moderna: “Atrás da cortina, vigiando a rua, o contista se repete: pobre Maria, pobre João, que em toda a casa de Curitiba se crucificam aos beijos na mesma cruz”.

Dalton Trevisan, poeta lírico?Sim. “Quod erat demonstrandum”.

João Manuel Simões

é poeta e prosador, membro da Academia Paranaense de Letras.

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