Juízo acompanha a trajetória de jovens com menos de 18 anos de idade diante da lei. Meninas e meninos pobres entre o instante da prisão e o do julgamento por roubo, tráfico, homicídio.

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Como a identificação de jovens infratores é vedada por lei, eles são representados em Juízo, último longa-metragem da documentarista Maria Augusta Ramos, por jovens não-infratores que vivem em condições sociais similares.

Todos os demais personagens de Juízo – juízes, promotores, defensores, agentes do Degase (Departamento-Geral de Ações Socio- educativas), familiares – são pessoas reais filmadas durante as audiências na II Vara da Justiça do Rio de Janeiro e durante visitas ao Instituto Padre Severino, local de reclusão dos menores infratores.

Juízo atravessa os mesmos corredores sem saída e as mesmas pilhas de processos vistos no filme anterior de Maria Augusta Ramos, o premiado Justiça, de 2004, e conduz o espectador ao instante do julgamento para desmontar os juízos fáceis sobre a questão dos menores infratores. Quem sabe o que fazer? As cenas finais do filme revelam as conseqüências de uma sociedade que recomenda “juízo” a seus filhos, mas não o pratica.

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No último dia 27, Maria Augusta Ramos veio da Holanda a Curitiba para participar do 1.º Encontro Ficção Viva, que visa trazer profissionais de destaque no cinema latino-americano para debater suas produções e processos criativos.

Iniciativa do Projeto Olho Vivo, Ficção Viva pesquisa a produção ficcional a partir de elementos da realidade para a realização de quatro filmes, com o patrocínio da Petrobras Cultural.

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Na ocasião, a diretora aproveitou para falar um pouco de seu trabalho e analisar a correlação entre ficção e documentário. O próximo Encontro Ficção Viva acontece no dia 29 novembro e terá como convidado o ator Carlos Simioni.

Na produção de um documentário existe sempre uma visão subjetiva do diretor, em que pesam várias opções e maneiras de se retratar a realidade. Como você analisa o seu estilo?

Maria Augusta: Eu faço o que eu chamo de cinema reflexivo. É um cinema que convida o público a refletir por si só. E faço isso com a forma, com a estrutura, com o trabalho de câmera, com o trabalho de edição, como abordo os meus personagens.

Tento retratar a realidade de uma maneira complexa, de uma maneira onde somos capazes de ver as várias dimensões, sem ter nenhuma intenção de estar explicando ou de causa-efeito.

Simplesmente procuro retratar essa realidade da maneira mais fiel, autêntica, ética e verdadeira possível. Ética e verdadeira no sentido de existir um compromisso com a verdade.

Porque [o processo] é subjetivo, no sentido do diretor manipular a realidade, é sempre uma construção formal, seja ela um documentário, ou seja ela uma ficção. O que a gente vê no filme não é a realidade ela mesmo, nem mesmo num documentário.

Documentários podem usar técnicas de ficção, como em seu último documentário Juízo, e as ficções, podem recorrer a procedimentos documentais, como no caso de Ficção Viva, que se vale da realidade para montar suas histórias. Até que ponto é possível mesclar estes dois gêneros?

MA: Eu acho que é possível fazer tudo o que se quiser. Um filme, seja ele documentário ou ficção, está retratando uma realidade, entretanto cada um da sua maneira. Existem várias ficções que são baseadas na realidade, mas usam elementos de documentário, assim como do,cumentários que usam elementos da ficção.

Há muito tempo isso tem acontecido. Mas é importante utilizar esses elementos com critério. Eles devem ser usados dentro de um compromisso com essa verdade. Acho que o cinema calcado no real é um cinema muito mais interessante do que um cinema que não tenha a realidade como ponto de partida.

Esta temática foi abordada no workshop que você realizou com os participantes de Ficção Viva. O que acha da proposta do projeto?

MA: Acho um projeto super bacana justamente porque eu acredito nisso. Eu acredito que a ficção também deve se calcar no real. No fundo, em todos os filmes os diretores fazem pesquisa em comunidades, situações e diferentes grupos sociais para se inspirarem, criarem personagens e construírem uma história, mesmo ela totalmente ficcional.

Os roteiros vêm de personagens calcados na realidade e você só constrói essa realidade conhecendo essa realidade. Tem que fazer pesquisa, tem que saber olhar para essa realidade mesmo que seja para desconstruí-la. Desconstruir para novamente construir.

Juízo tem uma solução inusitada para o problema do rosto dos menores: o campo é documental e o contra-campo, ficcional. Como você chegou a essa solução? Você já tinha tomado esta decisão quando começou o filme ou isso apareceu no processo?

MA: Logo no início do projeto, quando fiquei sabendo que os menores não poderiam ser identificados, me veio essa idéia. Mas tive medo que isso (substituir menores infratores por outros menores) não funcionasse, que parecesse falso, que perdesse o realismo que eu queria. Eu tinha que justificar para mim a função daquilo.

“Por que não colocar uma venda? Qual a conseqüência para a narrativa, para a percepção do filme?”. Porque o fato de substituir aquele menino por outro, em si, também é significativo. Se não fosse aquele menino, seriam outros mil meninos.

O que não está sentado ali poderia estar sentado ali. Queria dar um rosto, humanizar essas pessoas. O menor passou a ser muito desumanizado pela mídia.

Eu queria olhar esses jovens de frente: a carência, a apatia, a falta de perspectiva pregada no rosto, a desilusão com as instituições, com o país e ao mesmo tempo, sedentos, cheios de energia. Antes de começar a ficção, filmei e editei toda a parte documental, com os menores de costas. Foram cerca de 50 audiências filmadas em quatro dias.

Creio que mais ou menos 40 em três dias, e depois, a continuação dos casos escolhidos. Na época, a juíza fazia quase 20 audiências por dia. Escolhíamos o caso que parecia interessante em termos de delito. Era impossível filmar tudo.

E como foi a seleção dos garotos para a parte de ficção? Eles conheciam ou chegaram a conhecer os que estavam sendo julgados?

MA: Para a escolha dos meninos substitutos, contamos com a ajuda de duas comunidades, Bangu e Cidade de Deus. Eu não queria meninos atores, então não fomos, por exemplo, ao Nós do Morro (escola de atores de teatro e cinema que atua em comunidades carentes).

A idéia era “serem” eles mesmos, em vez de atuarem. Fomos a procura de garotos de comunidades que tivessem algum conhecimento do que é passar pelo juizado ou pelo Instituto Padre Severino, algum conhecimento da presença do tráfico. Foram selecionados os que tinham contato com essa realidade e que tivessem “personalidade”.

Eles trazem a personalidade deles, o que é importante para o filme. Vi muitas crianças. Eu e minha assistente íamos nessas comunidades fazer casting. Apareciam meninos até de nove anos! Eu via, tirava foto, conversava com eles. Creio que vi uns cem meninos. Esse contato foi muito bacana.

Maria Augusta Ramos nasceu em Brasília em 1964. Depois de se graduar em música pela Universidade de Brasília, mudou-se para a Europa onde estudou Musicologia e Música Eletroacústica em Paris, no Groupe de Recherche Musicale (Radio France) e, logo depois, em Londres, na City University. Em 1990, mudou-se para a Holanda onde ingressou na The Netherlands Film and Television Academy, especializando-se em direção e edição.