Compositor Nepomuceno muito além do viés nacionalista

A música brasileira do século 19, a dita do período romântico, amarga há muitíssimo tempo a condição de patinho feio da história da música no País. É vista como mera imitação dos europeus e simplesmente esquecida, marginalizada. Não chega às salas de concerto, não é gravada nem é objeto de estudos. Só é citada quando se encaixa na visão de que serviu de escada para o nacionalismo cujo esplendor aconteceu com Villa-Lobos, no início do século 20.

Esta visão distorcida, nascida sob condão do modernismo nacionalista concebido por Mário de Andrade, há pelo menos duas décadas já não vigora nos círculos acadêmicos – mas permanece forte na vida musical brasileira. Agora, a montagem da ópera Artemis no Teatro São Pedro, em São Paulo, e três produtos culturais ajudam a compreender melhor aquele período. Um, pelo selo inglês Hyperion, traz a primeira gravação do concerto para piano e orquestra de Henrique Oswald, com o pianista português Artur Pizarro e a Orquestra da BBC de Gales, regida por Martyn Brabbins. Isso acontece depois de 128 anos de sua composição.

Os outros dois lançamentos são brasileiros. No primeiro, o CD Delírio, o violinista Emmanuele Baldini e a pianista Karin Fernandes interpretam uma sonata do compositor Leopoldo Miguez (1850-1902) e duas de Glauco Velásquez (1884-1914). O mais consistente símbolo desta virada de concepção sobre a música brasileira do século 19 chega na passagem dos 150 anos do compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864- 1920), que até agora não foi motivo de praticamente nenhuma grande comemoração.

O lançamento do livro Formação Germânica de Alberto Nepomuceno, de João Vidal, pianista e professor da Escola de Música da UFRJ, é um divisor de águas. Vidal vira tudo de cabeça pra baixo. Até agora as histórias da música brasileira ensinavam que Nepomuceno foi “precursor” do nacionalismo musical, que escreveu música de “caráter nacional”. Destacam sua luta obstinada pelo uso da língua portuguesa nas canções. E indicam que a parte interessante de sua obra são as peças que compôs com as tradições musicais rurais ou urbanas do País. Como escreve na apresentação André Cardoso, diretor da Escola de Música da UFRJ e presidente da Academia Brasileira de Música, “a menor parte de sua produção, aquela em que se evidenciam mais claramente os caracteres brasileiros (…) cresceu em importância e ofuscou obras nas quais Nepomuceno se revela mais plenamente como compositor”.

O autor do tão executado Batuque é visto apenas por seu viés nacionalista. Ninguém havia estudado sua formação na Alemanha in loco. Pois João Vidal fez isso. Em entrevista ao Estado, ele diz que “a crítica musical brasileira do século 20 elevou o nacionalismo nas artes de direção ou tendência estilística a critério máximo de valor, um processo no qual o pensamento modernista desempenhou um papel decisivo. Colocada assim a questão, é claro que toda a produção do século anterior haveria de ser compreendida (ou incompreendida) como obra de ‘epígonos’, ou na melhor das hipóteses ‘precursores’.

Ele refez, entre 2008 e 2010, todo o percurso de Nepomuceno na Europa. “As escassas fontes primárias relativas ao período de 1888 a 1895 que se podia localizar no Brasil não davam um quadro completo de sua personalidade intelectual e artística, e mesmo aquelas relativas ao período anterior, em que o compositor viveu no Recife e Rio, restavam ainda desconectadas do período mais celebrado da vida do compositor.”

A pesquisa preencheu estes buracos na biografia de Nepomuceno, mas também levou a descobertas musicológicas importantes. No Recife, o contato com Tobias Barreto fez do compositor mais do que um “imitador ou divulgador da música europeia”, diz Vidal. “Como os intelectuais da Escola do Recife, Nepomuceno foi um conciliador de sistemas, é assim que podemos melhor compreender o mecanismo por trás da ‘síntese de influências’ ou ‘ecletismo’ apontados em sua música.”

Do ponto de vista biográfico, Vidal descobriu que o compositor estudou não só com Herzogenberg, amigo de Brahms, mas também com Max Bruch. “Há na biblioteca da Escola da UFRJ uma versão primitiva do primeiro movimento do quarteto de cordas nº 3.” Quando estudou com Bruch, Nepomuceno eliminou passagens cromáticas que denunciavam a influência de Wagner. Bruch, inimigo ferrenho de Wagner, levou o aluno a fazer outros cortes. “Os esforços de Bruch para afastar o aluno da ‘má influência’ de Wagner foram inúteis e levaram ao afastamento de ambos.” Por isso Nepomuceno nunca disse que estudara com Bruch. Vidal também esclareceu a real natureza da ligação do compositor com a Filarmônica de Berlim. O livro exibe um fac-símile de programa de concerto da orquestra em março de 1893 no qual Nepomuceno rege sua Suíte para Orquestra.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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