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Coleção traz texto provocador de Plínio Marcos, autor perseguido pela ditadura

No final da vida, o dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999) vendia exemplares com suas peças mais famosas em filas de cinema e de teatro. Eram versões apressadas e baratas de uma obra que esperava pelo devido reconhecimento. E, apesar da montagem de suas peças mais clássicas, como Barrela e Dois Perdidos Numa Noite Suja, nos últimos anos, a sua devida posição de autor clássico chega agora, com a publicação, pela Funarte, de Plínio Marcos – Obras Teatrais, seis volumes que reúnem 29 peças. Um trabalho notável sobre um artista não menos importante.

Curiosamente, Plínio brincava ao desdenhar da importância de sua escrita, acreditando que não era a força de suas peças que faria dele um clássico, mas o fato de o Brasil não evoluir. “Mas tal força está no domínio extraordinário que ele tem do seu ofício”, comenta o crítico e professor de literatura Alcir Pécora, responsável pela organização dos volumes, instituindo uma classificação tão eficiente com a criada por Sábato Magaldi para a obra de Nelson Rodrigues. “É isso que o torna capaz de representar questões e contradições agudas do Brasil, nas quais, como na piada que você menciona, ele via um caráter crônico, que as tornavam mais ou menos as mesmas desde o início da sua produção, no final dos anos 1950. Entretanto, de lá para cá, as contradições de que Plínio falava se tornaram muito mais visíveis à maioria, como a presença do lumpesinato (catadores de papel, drogados, chapas, desempregados crônicos, etc.) no cotidiano das grandes cidades. O que parecia visão de gueto ou nicho, agora se revela como estrutural na sociedade brasileira.”

De fato, Plínio criou um universo dramático sem concessões fáceis ao bom sentimento. Dois Perdidos, por exemplo, que foi montado pela primeira vez em 1966, revelou-se uma obra de virulência até então desconhecida.

“Impressionou o teatro brasileiro por fora, por dentro, para trás e para frente”, observa Pécora. “Por fora, porque a violência, o palavrão, a gíria foi algo inédito até então em palcos brasileiros, e mesmo em termos mundiais. Por dentro, porque essa contundência exterior se articulava a uma profundidade psicológica igualmente incomum no Brasil. Para trás, porque ajudou o teatro militante de esquerda a encarar o seu idealismo esquemático e condescendente no tratamento da gente do povo e do proletariado; para frente, enfim, porque abriu passagem para toda uma geração, aquela da chamada ‘nova dramaturgia’, de extração classe média e universitária, que tratou de pensar a política também em sua dimensão pessoal, psicológica, comportamental.”

Pécora selecionou 29 peças concluídas pelo autor (dez são publicadas pela primeira vez) a partir da última revisão feita por Plínio. Procurou ainda não unir clássicos em volumes separados, mas espalhados pela coleção e unidos com textos com uma linha temática principal. Muitas peças, como Navalha na Carne e Dois Perdidos, foram censuradas pelo regime militar. Como curiosidade, o sexto volume reúne o teatro musical (como O Poeta da Vila e Seus Amores, de 1977) e também o infantil de Plínio.

Fotos, cartazes, imagens de textos escritos à mão pelo dramaturgo e outras curiosidades – como ingressos teatrais – ilustram a obra, uma iconografia assinada por Ricardo Barros, filho de Plínio. A atriz, ex-mulher do dramaturgo e mãe de seus três filhos, Walderez de Barros, estabeleceu a versão final das peças.

Plínio era um artista de mente livre, despojada, mas profundamente atento ao que o cercava. Sua primeira peça, Barrela, de 1958, sobre a tensa relação entre homens na cadeia, foi inspirada em um notícia de jornal sobre uma curra acontecida em um presídio masculino. No texto, aliás, o que provoca a explosão na relação dos encarcerados é um cigarro, o que comprova a coerência técnica de Plínio em relação à importância que os objetos assumem para detonar uma situação-limite. Assim, enquanto um par de sapatos é motivo de uma briga mortal em Dois Perdidos numa Noite Suja, uma luminária quebra a tênue convivência de O Abajur Lilás.

“Esse ponto é extraordinário”, comenta Pécora. “Bastava essa observação para lançar por terra a ideia de um teatro pliniano apenas violento ou associado a temas malditos. Seu domínio dos meios do ofício de que falei antes se evidencia aqui: muitas vezes, no teatro do Plínio, todo o núcleo dramático da ação se faz a partir desses objetos, dos quais passa a depender todo o desenrolar da cena. Várias outras peças apresentam essa mesma presença marcante do objeto na cena: as garrafas vazias na Oração para um Pé de Chinelo; os chapéus, em Jornada de um Imbecil até o entendimento, etc., etc. Eles servem para detonar a situação-limite, como reiteração da exasperação que preside as relações interpessoais, mas também como definição ostensiva de um delírio, pois os objetos estão sempre muito distantes da significação que lhes é atribuída. Há um abismo entre a posse dos sapatos, por exemplo, e a garantia de um emprego e de uma vida organizada do trabalho, que não depende obviamente de um objeto isolado, por mais significativo que seja, mas de uma organização social estruturada em bases inteiramente outras.”

PLÍNIO MARCOS – OBRAS TEATRAIS

Organização: Alcir Pécora

Editora: Funarte (6 volumes, R$ 35 cada um)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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