Cicatrizes da natureza

Os pequenos olhos emolduram o rosto carregado de cicatrizes de 82 anos de revolta. Olhos que ainda choram diante da natureza morta e que vêem nos galhos e troncos destruídos por queimadas e pelo descaso humano um símbolo de esperança no futuro. Da boca, os comentários ácidos contra a ambição humana misturam-se a palavras doces em louvor à natureza.

A voz é baixa. É por meio de sua obra que o artista plástico Frans Krajcberg grita. “Grito contra as injustiças e a violência contra a vida, contra o homem, contra a natureza”, diz. “Espero que este grito seja entendido.” A partir de hoje, 114 esculturas de grande porte, três relevos entalhados em cascas de árvore, fotografias, vídeos e textos passam a fazer parte do acervo cultural de Curitiba, com uma exposição permanente no Jardim Botânico. “A mim interessa que as obras fiquem juntas, por isso quero colocá-las no lugar certo”, diz o artista que tem obras expostas em várias partes do mundo.

Em novembro, ele inaugura outro espaço em Paris. O terceiro será em Nova Viçosa, no litoral da Bahia, onde mora há 30 anos. Krajcberg espera que haja intercâmbio entre os três. “As obras devem ser o ponto de partida para a reflexão sobre as relações do homem com a natureza, sobre a arte e o meio ambiente. O próprio artista veio a Curitiba para organizar a colocação das peças de acordo com o material – palmas, cipós, grandes volumes, mangue, queimadas e cascas, entre outros.

A revolta de Krajcberg transforma em obra artística qualquer tronco de árvore queimada ou cipó arrancado de mangues e abandonado na praia. Não há como não ouvir o grito diante dos galhos que se abrem como braços decepados a pedir abrigo. Hoje, ele não gosta mais de viajar. “Há quatro anos fui ao Acre e chorei de tristeza, chorei como criança ao ver tanto massacre,” lamenta. “Tem de mudar o nome de Mato Grosso, pois nem mato fino tem mais; tem que mudar o nome do Brasil porque pau-brasil não tem mais”. A obra é o reflexo da vida. Filho de comerciantes judeus, Krajcberg nasceu em Kozienice, na Polônia, em 1921, no amargo rescaldo da 1.ª Guerra Mundial. A invasão da Polônia pela Alemanha, no início da 2.ª Guerra, pega-o longe de casa. Tinha 18 anos. Volta correndo, mas tarde. Nunca mais viu o pai, a mãe, os dois irmãos e as duas irmãs, presos e conduzidos para campos de concentração. “Sou um homem queimado”, autodefine-se.

Chagall

Os anos de guerra o levaram para muitas regiões da Europa, como integrante de grupos de resistência. Terminado o conflito, já com a visão internacionalista das artes, ele segue justamente para Stuttgart, na Alemanha, para estudar com Willi Baumeister. Em 1947, está em Paris, sem trabalho e sem condições de estudar. É quando o Brasil, conhecido então como o Novo Mundo ganha Frans Krajcberg. Graças ao pintor Marc Chagall, que lhe paga a passagem de terceira classe.

Primeiro o Rio, depois São Paulo. Na capital paulista, consegue emprego, mas foram anos sofridos, sem projeção artística, com telas cinzas, quase monocromáticas, que reproduziam seu estado de espírito. A depressão tomou conta. A revolta cresceu. “Depois da guerra eu fugia do homem”, lembra. O reencontro aconteceu em Telêmaco Borba (PR), na Fazenda Monte Alegre, da família Klabin, em 1952. “Foi o primeiro calor humano que eu tanto precisava”, emociona-se. “Senti que estava perto de uma família.” Na natureza encontrou respostas. “Ela me mostrou tudo e nunca me perguntou de onde vinha, que religião tinha, de que nacionalidade sou.” Mas parte de sua nova família começou a ser dizimada na década de 50. Até agora, ele demonstrava sua revolta em exposições itinerantes. Espera que as permanentes gritem alto.

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