Se há uma coisa que não falta a Rob Marshall é coragem para se cotejar com os grandes. Ele emulou ideias e conceitos de angulação e dança de Bob Fosse em Chicago, versão musical do espetáculo que o próprio Fosse criara nos anos 1970. Recebeu o Oscar de melhor filme, mas não o de direção. Em Nine, ousou transpor o clássico Oito e Meio, de Federico Fellini, obra-prima do diretor e um dos filmes emblemáticos dos anos 1960, para a tela. Foi chamado de louco, mas só a desonestidade intelectual de certa crítica não reconhece a beleza da participação de Fergie como Seraghina, que já era uma das grandes cenas (e tipos) do original felliniano.

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Rob Marshall ousa, de novo. Agora transpõe para a tela o show da Broadway em que o próprio Stephen Sondheim e James Lapine emulam Bruno Bettlelheim e sua Psicanálise dos Contos de Fadas. Into the Woods/Caminhos da Floresta conta uma história que, de certa forma, faz a síntese de diversos contos de fadas.

Chapeuzinho Vermelho, Gata Borralheira/Cinderela, Rapunzel, João e o Pé de Feijão. Tudo gira em torno de um casal que quer ter um filho e a quem a bruxa encomenda uma série de itens – objetos que remetem às tramas de carochinha, como forma de quebrar a maldição lançada sobre o túmulo da família. Só assim eles poderão ter filhos, que é o que a mulher mais deseja.

Temos assim a história do casal, e da bruxa. E as tramas clássicas que vão se fundindo nos caminhos da floresta. Chapeuzinho, João, Cinderela. E os príncipes. Nada é tratado com realismo porque o musical, território por excelência dos sortilégios de Rob Marshall, opera no registro da fantasia.

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Existiram tentativas de fazer musicais realistas, mas, no geral, com os maiores, tipo Vincente Minnelli (pai de Liza) e Stanley Donen, o musical sempre quis fazer o espectador sonhar, criando um mundo de sonhos que se choca com a realidade. O sonho dá o tom de Caminhos da Floresta quando Chapeuzinho encontra Johnny Depp na pele do lobo, ou quando o tolo João é enganado e troca a vaca, patrimônio da família, pelas sementes de feijão.

O tom é de fantasia, com muito canto e dança, mas é essa articulação das histórias (e das canções) que faz com que Sondheim (e Marshall) revisem, desde dentro, e psicanalisem, os contos de fadas, seguindo a vertente analítica e desmistificadora de Bettelheim. E o importante é que, no processo, como já assinalaram outros críticos, a produção da Disney consegue reformular o conceito do filme para crianças. Caminhos da Floresta tem todos os seus elementos, e com certeza pode ser atraente para os pequenos, mas é também entretenimento (diversão) com camadas. Cada espectador, em sua faixa etária – dos 8 aos 80, e mais -, poderá decifrar essas imagens e sons, conferindo-lhes a riqueza da sua percepção, e inteligência.

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Há quem diga que o filme é ruim, nada o salva. Não dê ouvidos. Não é nem mesmo exclusivo para adeptos de musicais. É um universo assustador, de monstros e magia, que arrasta o público (como os personagens) numa jornada de autodescoberta. Cinderella/Anna Hendrick; Chapeuzinho/Lilla Crawford; Rapunzel/MacKenzie Mauzy e Jack/Daniel Huttlestone somam-se à bruxa de Meryl Streep, indicada para o Oscar de coadjuvante pelo papel, ao padeiro e sua mulher que quer ficar grávida (a ótima Emily Blunt) e ao príncipe garanhão (Chris Pine), pintado como um priáprico que não pode ver rabo de saia. Na adaptação de Lapine (e Marshall), o véu mágico vai sendo dissolvido para que, no limite, e a despeito de toda aparência, crianças e adultos tenham outra percepção, mais verdadeira (realista?), desses personagens e situações.

Na hora H, descendo pelo pé de feijão, uma mulher gigantesca na Terra, mesmo que de faz de conta, em que se passa a história. Os personagens resistem a entregar-lhe João e aí toda a fábula muda de figura e a canção No One Is Alone/Ninguém Está Sozinho ganha outra dimensão. Todo esse universo de fabulação é criado (por Sondheim/Lapine) e recriado (por Marshall/Lapine) para celebrar o desejo de integração. Por mais que o homem se isole, vivemos em sociedade. Temos de ser solidários. É um filme que enche os olhos e libera os sentidos. Aguça o pensamento. Rob Marshall acertou, de novo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.