Camilo & Eça de Queirós: um paralelo possível

É indubitável que Camilo Castelo Branco (1825-1890) e Eça de Queirós (1845-1900), romancistas maiúsculos, juntamente com Antônio Nobre (do Só) e Guerra Junqueira (de Os Simples, Pátria e A velhice do padre Eterno), sem esquecer o patriarca Luís de Camões, os três, poetas robustos, foram os escritores lusos mais lidos no Brasil durante muitas décadas. Mais lidos e, por certo, mais amados.

A situação mudou bastante nos últimos tempos, mormente nas décadas mais recentes. O referido quinteto passou, talvez, para um segundo plano. E a primazia passou para nomes como Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa (Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro, durante algum tempo), José Saramago e Antônio Lobo Antunes.

Discutiu-se durante muito tempo, numa discussão bizantina, despicienda, nas duas margens desse “mare nostrum” que é o Oceano Atlântico, quem seria maior – Camilo ou Eça? Em Portugal, o confronto revelou uma vantagem razoável para Camilo. No Brasil, houve uma sensível e nítida preferência por Eça. Lá, Camilo vencia por dois a um. Cá, Eça ganhava de goleada. Provavelmente, na província da contemporaneidade, os placares não devem, pelo menos a princípio, ser muito diferentes. A verdade é que Camilo teve – e tem ainda – devotos fiéis, camilistas roxos. Da mesma forma que Eça possui – e possui ainda – adeptos entusiáticos, muitos dos quais se autodenominam “eçólatras”, algo fanáticos na sua devoção consuetudinária.

Veremos, porém, que a grandeza dos dois metres do romance, que com José de Alencar e Machado de Assis compõem o quarteto maior do condomínio lingüístico luso-brasileiro (na sua época, é claro, e depois, até os anos cinqüenta), se fundamenta, se não em características radicalmente opostas, pelo menos em aspectos claramente divergentes, em grau, gênero e número. De qualquer modo, há um fosso entre a obra do autor de Amor de perdição, A brasileira de Prazins, Novelas do Minho e Coração, cabeça e estômago (um romance curiosamente machadiano “avant la lettre”), e a obra do arquiteto de Os Maias, O primo Basílio, A ilustre casa de Ramires e A cidade e as serras.

Enquanto a prosa camiliana, densa e opulenta, com uma exuberância de selva amazônica, aparece recheada ainda de arcaísmos, de reminiscências e ressonâncias latinistas, de contorno clássico (pois Camilo é um clássico paradoxalmente romântico; clássico pela forma, romântico pelo conteúdo), a prosa eciana é algo diferente. Nela nós nos deparamos com uma autêntica revolução estética, tendente à facilidade, à clareza e à simplicidade.

Em favor de Camilo, demos a palavra a Monteiro Lobato, camilista notório: “Precisamos ler Camilo. Saber a língua, é ali. Camilo é a maior fonte, o maior chafariz moderno donde a língua portuguesa brota mijadamente (sic), saída inconscientemente, com a maior naturalidade fisiológica”.

Em favor de Eça, Franklin de Oliveira sustenta: “O verdadeiro terremoto que abalou Lisboa não foi o de 1755 (…). Foi um outro, incruento, embora muito mais exigente nas suas imposições inovadoras. Chamou-se Eça de Queirós”.

Se em Camilo a nossa língua ostenta ainda um sabor inconfundível de passado, tal qual a “madeleine” proustiana, se perpassa nela ainda uma atmosfera típica dos claustros dos conventos dos séculos dezessete e dezoito, com Eça (da mesma forma que com Antero e Machado de Assis) ela começa a adquirir a sua feição moderna, a sua epiderme atual, a sua pulsação por assim dizer contemporânea.

Podemos detectar em Camilo, sem esforço, uma identificação mais profunda com o caráter castiçamente português, com a alma lusa, nas suas luzes e sombras, grandezas e misérias. Isso se revela, na obra do trágico de São Miguel de Seide, na tendência visceral, no impulso irresistível para um romantismo descabelado, quase histérico, cheio de pinceladas melodramáticas de folhetim de capa e espada, “à la Dumas”, repleto de incidências patéticas, transbordante não só de ironia cáustica, como de azedume feito de sarcasmo e fel.

Já Eça revela-se o gentleman por excelência, misto de Fradique e Jacinto parisienses, cujo monóculo afrancesado enxerga a sociedade e os indivíduos com cética e risonha ironia, com humor algo ácido, mas também com humaníssima compreensão. Isso merece, com toda a clareza, os seus personagens maiores, de Gonçalo Mendes Ramires e Carlos e Afonso da Maia, do primo Basílio a padre Amaro, de Amélia a Juliana, de João da Ega ao conselheiro Acácio, do conde de Abranhos ao Raposo hipócrita. Em Camilo, as fontes primárias de criação, as tendências subterrâneas e as implicações mais evidentes, como assinala com agudeza José Régio, são a vontade do infortúnio, a atração do mal e as exigências espirituais da sublimação pelo sofrimento. Em Eça, em contrapartida, para lá da ficção que realisticamente copia ou retrata a vida, nós assistimos ao primado absoluto do virtuosismo estilítico. Sua morfologia é mais leve; sua sintaxe, mais ágil.

Embora sem a riqueza lexical camiliana, sem o transbordamento vocabular quase barroco, a verdade é que Eça estrutura a sua frase com muito maior musicalidade, em termos de harmonia e ritmo. Com muito maior plasticidade. Por isso ele influencia inúmeros escritores portugueses e brasileiros. E até mesmo espanhóis, como ensina o grande ensaísta galego Guerra de Cal, num livro que pode ser considerado fundamental: Lengua y estilo en Eça de Queirós.

Onde Camilo seduz e fascina pela riqueza do vocabulário e pela exuberância luxuriante da frase, Eça atrai e arrebata pela beleza suave, pelo “ostinato rigore” flaubertiano (ou stendhaliano?), pela fulguração emblemática. A sua prosa é verdadeiramente aquele “mármore divino com estremecimentos humanos” de que falou o biógrafo de Fradique Mendes.

Concluindo. Se alguém me perguntar qual, entre Eça e Camilo, é o meu romancista preferido, eu não responderei mineiramente que “entre les deux mon couer balance”. Serei sincero: fico com a obra arrojada do pobre homem da Póvoa do Varzin. Fico com o exegeta supremo de Santo Antero, nas Notas Contemporâneas, talvez o mais belo texto que já se escreveu, depois dos Sermões de Vieira (e por que depois e não antes?), dentro do condomínio idiomático luso-brasileiro.

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