‘Branco Sai, Preto Fica’ põe ficção científica na realidade brasiliense

E o cinema da quebrada ganha um espaço nobre nas salas da cidade. Até aqui, a voz da periferia, no cinema, tem sido vista no circuito alternativo, na Sala Olido, preferencialmente. Em outros locais, os filmes só chegam quando referendados por festivais ou apadrinhados por diretores famosos e distribuidoras grandes, como foi o caso de Cinco Vezes Favela, Agora por Nós Mesmos, e o padrinho era Cacá Diegues. Nesta quinta-feira, 19, ocorre o que não deixa de ser um pequeno milagre. Estreia Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós, que, antes de vencer o Festival de Brasília, integrou a seleção da Mostra Tiradentes do ano passado, perdendo o prêmio da crítica na Mostra Aurora para A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa.

A garotada de Ceilândia desembarca no Shopping Frei Caneca e o cinéfilo pode se preparar para um duplo banho – de realidade e criatividade. Numa entrevista por telefone, Queirós lembrou seu início. Antes de ser cineasta, seu sonho era ser jogador de futebol. Como profissional, integrou os times do Tabatinga e do Ceilândia. Não virou astro nem foi convocado para a seleção. Nada do glamour associado ao esporte. Pelo contrário, baixos salários, contratos precários. Queirós substituiu o futebol pelo cinema, “para arranjar umas namoradas”, como diz.

Formou-se na UnB/Universidade de Brasília e, em 2005, já militava na criação de um coletivo de cinema em Ceilândia. O Ceicine não discute só cinema, mas virou point da garotada da cidade-satélite de Brasília. Literatura, música, rap, questões de cidadania, movimentos sociais. O Ceicine virou foro para toda essa mobilização. Em 2012, Queirós venceu a Mostra Aurora de 2012 com A Cidade É Uma Só. Ele adora a Mostra de Tiradentes, “que permite que o cinema da gente aconteça”. Branco Sai, Preto Fica nasceu, como todo filme do Ceicine, de um compromisso com a realidade. “Nosso grupo (o Ceicine) foi agregando, de repente não era mais só o cinema.” O filme que agora estreia remonta a uma ação criminosa da polícia em Ceilândia, nos anos 1980. Como consequência, um dos integrantes do grupo perdeu a perna.

“Queríamos contar essa história, mas o próprio Marquim não se sentia muito confortável com uma abordagem documentária. Ele dizia que já havia perdido a perna, não queria repetir a experiência. Pelo contrário, gostaria de poder usar os recursos mágicos do cinema para voar, para fazer tudo aquilo que não consegue mais. Chegamos à conclusão de que queríamos intervir na realidade criando uma ficção científica. Mas como se faz sci-fi num país sem tradição do gênero, e sem dinheiro? Nosso método é sempre documentário, mesmo quando trabalhamos nas bordas, fazendo ficção. Nossas equipes são reduzidas. Têm de caber numa van. Mais que isso não dá.”

Logo na abertura de Branco Sai, Preto Fica, um cadeirante chega em casa, em Ceilândia. A casa também é um estúdio que abriga uma rádio pirata e Marquim começa a relatar o que houve com ele. Fotos antigas e sons de sirenes e helicópteros criam a ambientação – estamos de volta no tempo, em plena intervenção policial num baile black no Distrito Federal, há 30 anos. Marquim vai perder a perna na escalada de violência desencadeada pela polícia. E o curioso é que sua casa é cercada de grades, o que já define, como uma ideia de mise-en-scène, a prisão em que ele tem vivido, privado de sua mobilidade.

Esse começo introduz não apenas Marquim, mas também um estranho personagem num contêiner. Sua função ‘dramática’ vai sendo definida aos poucos. Esse homem é um viajante do espaço que veio do futuro, como um exterminador, para investigar o que ocorreu naquela noite fatídica. Existe, nesse fictício Brasil de 2073, uma Polícia do Bem-estar Social cuja função é manter a ordem numa sociedade dividida por classes sociais. Você pode até achar que uma coisa não tem nada a ver com outra, mas tente estabelecer pontes – elas são viáveis – com as facções de A Série Divergente: Insurgente, que também estreia hoje. “Muitas, não vou dizer que todas as falas do Marquim, se baseiam no que ele vivenciou e reconstitui, mas o forte do filme vem da ficcionalização. Fizemos muito laboratório para criar as cenas de Branco Sai, Preto Fica, e o filme demandou muito tempo, mais tempo do que estamos acostumados, porque, mesmo com pouco ou nenhum dinheiro, tivemos de criar artefatos e cenários para viabilizar nossa viagem do tempo. Uma máquina seria inviável, muito cara. A solução veio por meio do contêiner, que, mesmo assim, não foi nada barato de alugar.”

Desde o primeiro filme do Ceicine – Rap, o Canto de Ceilândia -, racismo e exclusão social têm sido temas sempre questionados pelo coletivo. Na Nova Brasília futurista de Branco Sai, Preto Fica, a capital federal é isolada das hordas que habitam na sua periferia. Para deslocamentos, são exigidos passaportes, o que, como ideia, parece inusitado e até divertido, mas expressa bem um poder isolado e questionado. Mesmo que não seja esse o tema do filme, ele não é estranho aos novos protestos que têm se verificado no País. “A sensação que os habitantes das satélites têm em relação ao Plano Piloto é de apartheid social. Brasília, como núcleo do poder, tem esse aspecto segregacionista”, reflete o diretor. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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