Bobby McFerrin vai cantar com Cesar Camargo Mariano

Bobby McFerrin talvez seja uma das maiores materializações da ideia que cita a voz como instrumento musical. Ao vê-lo e ouvi-lo, a sensação é de que algo ali não é normal. O timbre não se assemelha a nenhuma outra natureza vocal mais conhecida. As notas que saem de sua boca parecem tocadas, não cantadas, como se o próprio fosse um trompete, um sax, um fagote. Não há comparações. Nem os timbres desses instrumentos podem dar noções mais aproximadas de qual seria o tom daquela cor.

Mas então chega o momento em que esse cantor nascido na Inglaterra mas radicado desde criança nos Estados Unidos chama a plateia que o cerca e algo ainda mais assombroso acontece. McFerrin primeiro divide a audiência em grupos para que eles o acompanhem cantando diferentes notas, em tempos distintos. Depois faz com que todos cantem juntos. Quando aquela massa ganha firmeza, ele larga a condução e passa a improvisar uma melodia sobre a base que a plateia sustenta. O que parecia uma brincadeira começa a ganhar sentido. Seus concertos pelo mundo são estímulos à autoconfiança de que todos podem experimentar a música tocando apenas um instrumento chamado voz.

McFerrin estará no Brasil nos dias 5 e 7 de março para apresentações no 5º Festival de Música em Trancoso, na Bahia. No dia 5, em uma noite chamada Bobby Meets Brazil, vai cantar e reger a Orquestra Experimental de Repertório, que terá como solista o pianista Maciej Pikulski. Já no dia 7, vai se apresentar ao lado do padrinho de todos os anos do festival, o pianista Cesar Camargo Mariano.

O músico faz uma retificação logo no início da entrevista, concedida ao jornal por e-mail, dos Estados Unidos. “Eu não vou cantar com a orquestra, vou apenas conduzi-la.” Sua atividade de regente é quase tão antiga quanto seu canto, mas menos visível. “Eu também vou ter a chance de me sentar ao lado de Cesar Camargo Mariano dois dias depois. Já estamos em contato para escolhermos algumas músicas clássicas para tocar. Nada está finalizado ainda”, diz. E, diante da insistência do repórter em saber algo do repertório, ele diz: “Venha ver e ouvir por si mesmo!”

Em palestra sobre a voz humana, durante uma edição do Festival Mundial de Ciência, McFerrin falava sobre expectativas sonoras quando decidiu dar o exemplo com seu próprio corpo. Cada região do palco em que pisava deveria equivaler a uma nota. Ele pulava sobre um ponto e a plateia cantava determinada nota. Depois de mostrar quais seriam as notas relativas a três pontos, passou a pular por outras regiões do palco deixando a plateia deduzir as notas que seriam naqueles locais. E todos acertavam, como se fossem músicos. “É sempre uma grande alegria para mim quando o público começa a cantar. É o mais belo som”, diz ele.

Sobre a voz de cantores, o músico responde a outras discussões. Cantores e cantoras evocam muitas vezes a emoção para justificar a falta de técnica, as notas que não são atingidas, as bolas na trave. Como se dissessem que o que vale é ter emoção, uma pseudo teoria que pode ser usada como muleta para esconder imprecisões. O que diz McFerrin: “É fascinante observar os seres humanos. Às vezes respondem a estímulos de uma forma, às vezes de outra. O ideal, claro, é que os cantores tenham tanto conexões emocionais quanto capacidades técnicas no mesmo nível. Eu nunca iria querer escolher entre os dois.”

A voz é também maltratada muitas vezes por artistas que não a educaram para usá-la bem por anos. A pergunta ao cantor é a seguinte: “Temos casos sérios no Brasil de artistas importantes que estão em seus limites vocais. Gilberto Gil, por exemplo, quase não consegue mais atingir notas altas. Quem não se importa com a voz pode acabar mais cedo com a carreira?” Ele responde: “Tudo o que um cantor pode fazer é se cuidar, e saber que o corpo é o nosso instrumento. E, sendo esse nosso instrumento, ele reflete a nossa saúde. Mas cada organismo é diferente, cada voz reage de uma forma.” McFerrin diz que o passar dos tempos, ao contrário de um pensamento comum, não é a condenação da voz de um artista mais velho. “Às vezes, o som da voz de uma pessoa muda com a idade. Mas, mesmo que algumas notas altas possam faltar, as cores podem ficar mais interessantes. Eu tive a sorte de manter meus tons quase que os mesmos desde que era jovem, mas hoje fico cansado muito mais facilmente do que quando eu era jovem, claro.” Seus cuidados: “Eu bebo muita água e muito chá. E durmo bem. Ah, e não falo em ambientes com muitos ruídos ou que tenham música alta”.

A obra de Bobby McFerrin é extensa e de picos impressionantes. Depois de se decidir pela música, em 1977, ele lançou o de estreia, em 1982, e então o que seria seu grande orgulho: The Voice, de 1984. Quatro anos e quatro discos depois, o álbum que se tornaria sua vergonha: Don’t Worry, Be Happy. A música se tornou seu maior sucesso e, ao mesmo tempo, uma corrente amarrada ao tornozelo. Ele a cantou por anos até chegar à conclusão de que em nada representava seu trabalho. Declarou certa vez que não a cantaria mais, mas alguns shows que se seguiram a essa declaração o fizeram mudar de ideia.

A pergunta sobre o assunto é assim: “Li você dizendo que não gosta da música Don’t Worry, Be Happy. De certa forma, a expectativa para cantar esta canção não se tornou uma pressão desconfortável para você?” E essa foi a resposta: “Essa música foi gravada em um estúdio com sete faixas vocais em camadas sobrepostas. Isso não deveria ser usado para performances ao vivo. Eu prefiro cantar coisas que as pessoas não tenham ouvido um milhão de vezes!” Mas a próxima pergunta é: “Você vai cantar Don’t Worry, Be Happy no Brasil?”. E a resposta: “Eu nunca digo não. Mas, provavelmente, não”.

O pai de Bobby foi Robert McFerrin, o primeiro cantor negro de prestígio na ópera. Sua veneração ao velho, morto em 2006, é marcante, como ele deixa transparecer ao ser perguntado sobre questões raciais trazidas à tona recentemente pelos atores de Hollywood. Esqueça a polêmica. Bobby quer falar de seu pai: “Ele tinha um padrão de disciplina e musicalidade que superou tudo o que eu já encontrei. Ele ganhou o respeito de seus colegas e do público através de seu talento incrível e ética de trabalho. Me ensinou a sentir respeito por meus próprios dons e a tentar fazer o meu melhor para honrar a plateia.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Voltar ao topo