BNegão era mais conhecido como Bernardo Santos do que pelo apelido com o qual passou a ser identificado ao se transformar em um dos nomes mais importantes do rap nacional a partir dos anos 1990, com o estouro do Planet Hemp. Moleque de tudo, adolescente que ouvia de Emílio Santiago, por influência do pai, a punk rock nacional (Garotos Podres, Ratos de Porão e outros nomes do gênero mais combativo surgido naquela década), ele comprou por uma pechincha Dorival e o Violão, disco de 1959 de Dorival Caymmi, em um sebo no centro do Rio de Janeiro. Rumou de volta ao apartamento dos pais, no bairro de Santa Tereza, para seu ritual: num quartinho da casa, encaixou o vinil na vitrola, desceu a agulha, deixou a bolachona rodar.

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Com as luzes apagadas, deitou no chão. De olhos fechados, viu o mundo. Um novo mundo. Pensou que ouviria canções praieiras, “solares”, como ele explicou. Recebeu, de volta, um petardo sombrio e denso do início da carreira de Caymmi – grande parte das canções do disco era de Canções Praieiras, a estreia do cantor, compositor e poeta nascido em Salvador, lançado em 1954.

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“Aquilo era quase Black Sabbath”, brinca BNegão, dono de um dos risos mais fáceis e bem-vindos do hip-hop brasileiro. Aos 44 anos, ele enumera os projetos que estão por vir. São shows com Planet Hemp e as ideias de um novo disco ao lado do grupo seminal. Há também o relançamento do vinil de Enxugando o Gelo, disco de BNegão com Os Seletores de Frequência, pela Assustado Discos, para celebrar os 15 anos do álbum que levou sete anos para ser compreendido pelo público do País.

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O que mexe com a cabeça de BNegão atualmente, contudo, é a lembrança dos tempos de Bernardo Santos. Vai resgatar a sensação de ouvir aquele disco de Dorival Caymmi com o primeiro show completamente de canção da carreira do rapper.

Com o nome de BNegão Canta Dorival Caymmi, a apresentação tem sua estreia marcada para os dias 28 e 29 de abril, no teatro do Sesc Pompeia. Nela, Bernardo estará ao lado apenas do seu xará Bernardo Bosisio, que tocou com nomes que vão de Ed Motta a Arthur Verocai, ao violão. O repertório não incluirá as canções solares da carreira de Caymmi e, sim, dará foco nos discos Canções Praieiras (1954), Caymmi e o Mar (1957). |

Há pelo menos dez anos BNegão cogitava realizar a apresentação, mas, como ele conta, faltava-lhe coragem. “Era como aquela pessoa que nunca viu o mar, sacou?”, ele diz. “E então essa pessoa fica diante do mar, aquela coisa gigantesca, mas não entra. Fica com medo e diz: ‘deixa para amanhã’. E vai embora”, explica. Há dois anos, os dois Bernardos já se juntavam para alguns ensaios desse repertório. “Fiquei apavorado e parei”, ri BNegão. Ano passado, a mesma coisa. “Fiz mais alguns ensaios, apavorei e parei”, conta, “mas tinha tudo na cabeça, os arranjos. Sabia como seria o show.”

As turnês dos últimos anos ao lado de Wilson das Neves (que morreu em 2017) mostraram a BNegão (ou Bernardo) que aquele medo era bom. “É um show difícil, porque não tem como você se esconder”, ele explica. É o mesmo sentimento que invadiu o adolescente que, deitado, ficou diante do ameaçador, misterioso e apaixonante mar cantado por Dorival Caymmi. “Com aquele disco, eu senti medo, fiquei apavorado, sem respirar. Foi algo que me marcou.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.