Barrados nos Aeroportos
Vencidos os problemas, no avião Márcio dorme. |
Quando fomos resgatados da selva amazônica, numa aventura em que nos embrenhamos para vencer cinco mil quilômetros entre Manaus Velho e depois Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná e Santa Catarina em cima de um jipe Ensega, não saímos muito bonitos. Depois de termos enfrentado todos os desafios da sobrevivência para voltarmos para a civilização, era natural que estivéssemos desfigurados. A nossa alimentação era frutos silvestres, folhas comestíveis, carne de onça, cadê de macaco, porco-do-mato, e algum macarrão e batatinha que um acampamento de trabalhadores nos fornecia na sobra.
Assim lutamos oito dias e oito noites para vencer a BR-319. Dormimos no jipe em plenos atoleiros, em choupanas abandonadas, em cabine de caminhão, aliás, onde dava para encostar o corpo. Eram 15h de Quarta-feira de Cinzas, dia 1.º de março, quando entramos no aeroporto de Manaus. Apinhado de turistas. Depois de oito dias na selva, no lodo, empurrando jipe, caminhão, cavando uma trilha para sair, nos arrastando no barro, as nossas roupas também foram ficando ou nos galhos das árvores ou abandonadas pelo mau cheiro.
Márcio teve dificuldades para tomar o avião. |
Além de estropiados, sem poder usar um calçado decente, o nosso traje não era pouco social embora higiênico e muito menos de gala. Passamos a chamar a atenção e sermos observados. Márcio, meu companheiro de aventura, com sandália havaiana de dedo, calça pescar, camisa jogada sobre a calça, cabelo em desalinho, tornozelo e pés feridos, era uma ameaça à etiqueta social e às regras da boa educação. Mas era o que tínhamos. Transformamos uma sala do aeroporto em ambulatório e aí mesmo nos medicamos. Márcio estava com os pés e os tornozelos em carne viva; duas unhas das mãos tinham ficado pelo caminho. O curativo estancou o sangue e a dor. Eu comprei uma camisa no aeroporto, dessas que a gente compra para trazer de lembrança por onde passa, a troquei na hora e até fiquei meio decente. Tratei um dedo inflamado cuja unha havia ficado na selva, perdida em razão de uma picada de inseto venenoso. Márcio fez um novo curativo de uma ferida que tinha nas costas, formada por espinhos quando procurava água na mata. Muito bem observados, passamos por todos os ?check-in?.
Aguardávamos hora da chamada para o embarque. Às 16h45 foi anunciado o vôo para São Paulo. Ao apresentar o ?ticket? de embarque, a funcionária da Infraero exigiu documentação de identidade de Márcio. Era a carteira de delegado da Polícia Federal. ?Mas vou ter que chamar um seu colega para liberá-lo?- foi a satisfação que a moça deu. Cara fechada, o policial federal chegou, apanhou o documento e depois de examiná-lo demoradamente, de medir Márcio de baixo para cima, de cima para baixo, liberou o maltrapilho colega. Em São Paulo o drama se repetiu. Quase à meia-noite chegamos a Curitiba, agora sem a bagagem. Ela havia ficado pelo caminho da nossa aventura, mas foi entre dois dias depois. Dos fatos vividos na civilização, concluímos: realmente, é o traje que faz o monge.
(Na próxima e última edição: as imagens da aventura)
Depois de índio na presidência, agora traficante
Ele é médico, mas um verdadeiro líder, é ídolo de sua gente, herói: tem centenas de músicas cantadas pelas crianças da pré-escola que exaltam sua bravura, seu heroísmo. Sua simpatia é tão contagiante que o povo se apaixona por foto dele nos jornais. Tem grande perfil e vocação política.
Tem quem aposte que em breve ele será o presidente da República. Mas tudo isso ele não alcançou com a medicina, numa clínica geral, talvez numa especialização de área onde seus colegas não queriam entrar. Ele não é brasileiro, mas é nosso vizinho. Dia 29 de maio foi eleito deputado federal com extraordinária votação.
A história desse médico foi contada pelo delegado da Polícia Federal Márcio Anater, vivida em Tabatinga, fronteira com a Colômbia e Peru, enquanto esperávamos ser resgatados da selva amazônica da aventura em que nos metemos. Oito dias de expectativa, tensão e medo, só havia uma forma de fazer o tempo passar: contar e ouvir estória dos nativos. Passeando pelo que sobrou da BR-139, Márcio lembrou que conheceu pessoalmente o personagem desta história.
Enquanto delegado em Tabatinga, Márcio conta que atendeu ao caso mais inusitado que já viu até agora na sua carreira policial, o chamado ?homem-bolsa?. Mas explica o delegado que colar cocaína no corpo é coisa corriqueira, mas quando achar uma pessoa cheia de faixas amarradas nas pernas e embaixo delas não é cocaína? Pois foi o que aconteceu no aeroporto daquela cidade. Numa manhã os policiais que lá prestavam serviço abordaram um garoto, estranhando tantas faixas nas pernas e conduziram o moço, que ficou conhecido como o ?homem-bolsa?, até a presença da autoridade. Retiradas as faixas, embaixo delas, nas duas pernas, havia oito pequenas cirurgias, recentemente feitas (ainda cheias de pontos). O jovem, que apenas tinha saído da adolescência, dizia que tinha mandado fazer aquelas ?operações? para definir a musculatura, já que era desmilingüido e discriminado por ser muito magro.
Contou que foi um médico colombiano ?amigo? que havia feito as operações. E o mais interessante: ?de graça?. Os médicos brasileiros que foram consultados afirmaram nunca ter visto aquele tipo de cirurgia. Levado ao lado colombiano, os médicos de lá não tiveram dúvida: era a implantação de bolsas para o transporte de cocaína líquida. O sistema tinha tal perfeição que, depois que os cortes sarassem, o que aparecia seriam ?músculos?, que na verdade seriam pequenas bolsas, do tipo daquelas que se usa para armazenar sangue, cheias de cocaína (o processo de enchimento e esvaziamento é bem simples).
Não haveria cão farejador, RX ou tino policial que desconfiasse que ali ia um ?mula? diferente. Porém, o ?homem-bolsa? ainda não tinha cocaína. Só levaria um líquido inerte, para acostumar os tecidos. O interessante foi a justificativa do médico colombiano: havia cobrado equivalente a algo como 10 mil reais para o que dizia ser uma ?cirurgia plástica?.
Márcio prossegue na história: passados alguns meses, a surpresa: o médico foi preso pela polícia colombiana.
A partir do ?homem-bolsa?, os colombianos passaram a investigar o médico e encontraram mais onze dessas ?mulas?. Um deles ao ser preso resolver colaborar e entregou o médico que trabalhava para o trafico. A prisão dele provocou uma consternação em Letícia. Era um dos grandes médicos da cidade, um verdadeiro líder com vocação política.
?Anote aí?, pede Márcio. Esse médico será presidente da Colômbia!! Anote o nome dele: Rogelio Compusano. O médico foi liberado da prisão para concorrer a uma vaga para a câmara dos deputados deles. Lá é assim: ao se candidatar o cara é solto. Se não se eleger volta para a prisão. Campusano foi eleito com mais de 30 mil votos num estado que só tem 50 mil eleitores. Ele, além de bom médico é um ídolo dos colombianos que o conhecem. Se ver a foto dele no jornal, vota. Tem perfil para ser presidente. Márcio diz que o conheceu pessoalmente.
Vamos esperar para conhecer um traficante na Presidência da Colômbia, segundo previsão de Márcio. Parece que ele conhece bem como pensam os colombianos. Diz que lá ?traficante é herói?. Tem centenas de músicas cantadas até pelas criancinhas da pré-escola que exaltam o heroísmo daqueles que desafiam a polícia, o Estado, que vão para a prisão por caso da cocaína…. essas coisas. Aqui no Brasil, qualquer um que cantasse uma música dessas iria para a cadeia. Lá vira ídolo. Coisas da nossa ?vizinhança?. Márcio recomenda o filme Maria Cheia de Graças, para quem quer conhecer o mundo dos ?mulas? que levam drogas no estômago. Filme colombiano, é lógico.
O sofrimento do Catarina
Na selva, catarina guarda seu veículo até poder sair. |
Ele está em Manaus há cinco anos. Casou com uma indiazinha de 17 anos e tem um filhinho de dois anos e meio. ?Meio índio e meio catarinense?. Parece nada dar certo para ele que deixou Itajaí para mexer com lavoura, no norte do País. O assentamento do Incra não prosperou. Fez inscrição e está a três anos esperando que lhe dêem a terra. Tem a documentação das terras que requereu. Visitou áreas em Pau Rosa, Manaus e Boa Vista no Km 21. Foi feito o assentamento mas as casas estão abandonadas no meio do mato e o Incra não repassa. ?É uma burocracia muito difícil, o Instituto não repassa a terra?.
Convivemos com Eunildo Melo, 53 anos (faz questão de informar que casou com uma indiazinha de 17 anos) na mesma desgraça nossa. Com saudades da família catarinense, resolveu visitá-la para mostrar a nova mulher e o filhinho. Em 10 de fevereiro deixou Manaus em uma caminhonete com a mulher e o filho e quando deixamos o acampamento, no final do mês, ele ainda estava lá. Pegou a 319 mas ficou no Km 408. Ficou três dias e três noites completamente isolado. Chovia muito. Fizemos um acampamento com barraca, mas bate o vento e molha tudo, arranca tudo. Muito difícil. Alimentaram-se de carne de macaco até aparecer o pessoal da Embratel para socorrê-los. A mulher e o filhinho foram levados de volta a Manaus. ?Matei um macaco com o nome de Cuxiô. Era muita chuva. Tudo muito difícil, então tive que matar o macaco para comer, para sobreviver.?
Eunildo não imaginava que a aventura que começou com a família fosse desse tamanho. Mas diz que não disistiu da viagem. ?Dei uma parada por falta de condições da estrada e do carro que quebrou.? Diz que coragem para isso ele tem, basta consertar o veículo e melhorar a estrada. A indiazinha e o filhinho, a Embratel levou para Manaus e Eunildo, quando perguntado por que escolheu a 319 para a viagem, ele diz: ?Agora tenho que rir. Essa rodovia só existe em propaganda política. A propaganda diz que um trecho da BR-319 já foi recuperado, só que eu estou passando por aqui e não vi isso. Acho que bateram foto de outra estrada para mostrar que seria aqui?. Então você foi iludido? ?Mas muito iludido. Cegamente iludido, porque essa estrada que a televisão mostra aqui eu não vejo.? Virou estrada de onças? ?Tem onça. Aqui conosco tem couro de onça espichado, foi caçada para ser comida pelos trabalhadores.? Ele garante que só matou um macaco para comer porque depois chegou o socorro, senão teria que matar mais! E a BR-319? ?Em minha opinião, volto a insistir: política. Por que os poderosos têm balsas que dão muito dinheiro, dão muito lucro, e tendo a estrada eles não ganhariam.? Foram eles que mandaram destruir a rodovia??
?Segundo me consta, sim?. Há esperança de recuperação? ?Acho que se botassem gente séria aqui, esta estrada não teria ficado nas condições em que se encontra ?Z. Os mais de 1 mil quilômetros da BR-319 foram construídos pela forma que aqui no Paraná se denomina casca-de-ovo. É jogada uma fina camada de asfalto sobre o leito da estrada, sem base, sem nenhuma sustentação. Com o tempo ela vai se deslocando em bloco. Hoje, em toda sua extensão não há 30 km de asfalto. Quando encalhados os veículos nos imensos atoladores, os próprios motoristas arrancam blocos de asfalto para calçar o caminhão. Na região não há pedras e não é fácil encontrar material sólido para ser usado como auxílio.