Ausência de um homem elegante

O poeta Paulo Leminski faria 60 anos nesta terça-feira, dia 24, se estivesse vivo. Como poetas não morrem, o cara está vivo. Digamos, um pouco ausente, mas bem vivo. E, no caso de Leminski, mais vivo que muitos vivos. Além de sua poesia ter feito a cabeça da moçada dos anos 80, influenciou as seguintes, porque deixou maná e o poeta tinha bagagem sólida, coisa que andou pegando nos anos de seminário, erudição monacal. Se virava em russo, grego e japonês. Era fluente em latim, coisa que quem dominava latim, garante. E sem contar que no inglês, francês e espanhol dava conta do recado.

E dar conta do recado, no caso, é assimilar uma cultura no idioma original. Isto fez de Leminski avis rara em seu tempo. E seria ainda hoje. Leminski também era bom de briga literária. Basta ver as epístolas que deixou. E bom de bar. No início de sua aventura literária, o poeta namorou o concretismo. E daí saiu o Catatau. E por conta desses anos, Leminski é referência no nicho concretista. O poeta Décio Pignatari reconheceu a contribuição de Leminski neste laboratório criador.

Ex-seminarista, depois professor de cursinho; um dia lutador de artes marciais e noutro publicitário. Às vezes jornalista, e nas horas vagas um dândi. O velho Leminski de guerra, que os amigos chamavam Paulo viveu como quis. Até o dia 7 de junho de 1989, quando expirou, deixando amigos e admiradores perplexos com a sua ausência. Foi-se no finalzinho dos anos 80, a década do Leminski.

O homem virou lenda

O certo é que depois disso, Leminski virou pedreira, uma lenda. E as lendas quase sempre são imortais. Elas se preservam sob o fogo permanente, longe das impertinências dos críticos e da razão. O poeta virou lenda e ela protegeu o patrimônio literário. Algo natural em outros poetas brasileiros, mais meteóricos que ele, como Mario Faustino (morreu em acidente de avião, no Peru), Torquato Neto (deu adeus à vida, deixando um belo poema) e Castro Alves (deu um tiro no pé). Com lendas não se brinca. E a obra ficou junto com a lenda.

Não resisto em comparar Leminski a dois russos. Como Puchkin, o maior poeta russo, Leminski tinha sangue esquentado de negro e do leste europeu. E uma propensão a embates homéricos. Morreu de uma forma que amigos e amadas diriam ser evitável. E como Sierguei Iessenin deixou um belo poema em que revela perplexidade com o significado desta coisa que pulsa em nosso corpo e a que chamamos vida. A diferença é que Iessenin escreveu com sangue o último poema e Leminski embalou com reaggae sua Dor Elegante, em parceria com Itamar Assunção: “um homem com uma dor/é muito mais elegante/caminha assim de lado/como se chegasse atrasado/chegando mais adiante”. Há uma eloqüente ironia na letra, que de resto serve também para Itamar Assunção, como duo e melancólico epitáfio.

Um homem com uma dor. Um homem elegante. Esta é uma definição quase inimaginável e por isso original, e de uma auto-ironia que se encontra em boa parte nas coisas de Leminski. Poucos no Brasil se debruçaram sobre si mesmos, com tanta ironia, quanto ele: “o paulo leminski/é um cachorro louco/que deve ser morto/a pau a pedra/a fogo a pique/senão é bem capaz/o filhadaputa/de fazer chover/ em nosso piquenique”. É preciso ser mais que criativo para fazer uma coisa destas.

E ele tinha consciência da coragem, já que alardeava aos quatro ventos o sangue polaco e negro e também se confessava perplexo pelo fato de os poloneses serem um povo extremamente corajoso e louco. Ele fez o comentário certa vez a propósito de uma passagem histórica, quando mencionou a resistência dos poloneses aos alemães: os poloneses enfrentaram os tanques alemães em seus cavalos e com espadas. Realmente, a cena é espantosa. E ele, acreditava, era um produto daquela gente: não podia ser diferente.

Eu sou o seu profeta

A trajetória literária de Leminski, eu presumo, pode ser definida em duas partes: a anterior aos anos 80 e a posterior. A primeira tem o Catatau como ápice e se vincula ao concretismo, como uma contribuição no Brasil às experiências formais. Não deixa de ter um parentesco com Grande Sertão-Veredas, de Guimarães Rosa, por uma opção literária mais ousada. Pelo menos, os dois, cada um à sua maneira, entraram neste território.

O poeta estava atento a ele. Tanto que traduziu um livro de James Joyce (Giacomo Joyce) ao fim do qual tenta explicar porque o irlandês era o maior prosador do século 20. “Pelo insuperável domínio dos poderes de som e sentido da língua”, diz Leminski. “Depois, pela coerência arquitetônica que conseguiu imprimir ao conjunto de sua obra”. Ele tinha uma compreensão da obra de Joyce a ponto de fazer uma afirmação elementar, correta, mas que ninguém teve a humildade de dizer até então: “Ulisses foi difícil (é cada vez menos)”, disse com acerto.

E Catatau, de 1975, tentou estabelecer uma ponte com esta herança, erigir em língua portuguesa algo parecido, tomando por enredo a fantasiosa presença de René Descartes no Brasil. Descartes espera o militar polaco Krzysztof Artyczwsky, que chega bêbado e somente nas últimas linhas do livro. E este era o homem que ia explicar Descartes. O mais fantástico neste livro, como em muitas coisas do Leminski, é o engenho da proposta, meio irônica e provocadora. É possível estabelecer que a razão tenha tentado entrar no Brasil, por Pernambuco, através dos holandeses. E que pelo atraso do polaco bêbado, ela nunca entrou no País. Esta pode ser uma interpretação. Não á única. No entanto, o resultado esta longe de ser uma fábula ou ainda assim uma história picaresca. O que surge é uma arquitetura literária de escalada trabalhosa.

Mas, depois deste livro, ele foi se afastando do legado concretista. Em uma carta no final dos anos, 80 ele anuncia: “Basho disse: não siga as pegadas dos antigos. Procure o que eles procuraram”. E, a partir daí, procura o seu caminho. No começo dos anos 80, em um livro chamado 80 poemas, Leminski ainda revela alguns laços com o concretismo, mas se nota a proximidade de elementos que viriam a constituir sua marca dos anos 80. Podem ter um contorno concretista poemas como: “Confira/tudo que respira/conspira”, “Ameixas/ame-as/ou deixe-as” e “entro e saio/dentro/é só ensaio”, mas eles já enunciam haiscais subseqüentes e se afastam do rigor experimental em troca de maior liberdade e uma quase inconseqüência retórica: “inverno/primavera/poeta é/quem se considera”. Há quase um prazer em brincar com as palavras e os sons: “parem/eu confesso/sou um poeta”. No começo dos anos 80 ele já diz: “eu sou o seu profeta”. E talvez tenha sido isto: o profeta poético dos anos 80. E referência para os poetas mais jovens, como Rodrigo Garcia Lopes e Ademir Assunção, entre muitos outros. Este é um legado que ninguém lhe toma.

O poeta Ademir Assunção, um dos editores da revista de cultura Coyote, se espantou nos anos 80 com a habilidade de Leminski com os poemas curtos e a sua voracidade criadora, se é que esta expressão faz algum sentido. Os poemas tinham estrutura semelhante a dos hai-cais japoneses, apesar de rigorosamente não serem haicais. Assunção se entusiasmou, principalmente, com a intenção de Leminski fazer da poesia algo menos sagrado e mais presente na vida das pessoas, através da música. Fazer a poesia migrar para a música, foi, segundo ele, uma sacada genial.

E esta sacada fez de Leminski um divisor de águas na poesia brasileira, realmente uma espécie de profeta de um novo tempo. Depois que Leminski morreu, Assunção tornou-se um dos arautos de seu legado, um novo profeta que levava a boa nova do Leminski para regiões distantes. E ela fascinava os jovens, porque os poemas do polaco soavam como palavras dançando no céu da boca.

Cristo e Trotski

Os anos 80 devoraram Leminski e ele devorou os anos 80. Uma autofagia mútua. Um consumindo o outro até o fim. Leminski fez letras de música, traduziu livros, entre suas traduções, muitas continuam únicas como “Um Atrapalho no Trabalho”, de John Lennon, além de livros de John Fante, Samuel Becktett e Yukio Mishima. E escreveu romances (Agora é que são elas é um livro maneiro, para usar uma definição que não define muito, com um argumento sofisticado) e escreveu biografias. De Jesus Cristo a Bashô. E uma estranha biografia de Leon Trotski, que revela a coragem do polaco.

Quando se meteu nesta empreitada já havia há muito na praça uma trilogia que era de longe considerada a melhor biografia de Trotski: O Profeta Armado, O Profeta Desarmado e O Profeta Banido, do historiador Isaac Deutscher. E Leminski entrou na parada, justificando a coragem louca dos polacos.

Este é o legado do poeta, a sua obra. Uma obra desigual, às vezes ousada, que em seus melhores momentos alça longo vôo, chegando a territórios que outros nem imaginaram. Que em alguns momentos toca os alquimistas da palavra e em outros os surfistas da Joaquina, arrancando a mesma e sincera admiração; que vai da juventude a um amadurecimento bruscamente interrompido por uma dor elegante, esta, segundo ele, a sua última obra. Acabou rendendo material para uma biografia, de Toninho Vaz (O Bandido que Sabia Latim). A vida do polaco foi um material razoável, uma argamassa de bom tamanho para uma lenda. E acabou sendo.

Baianos & polacos

Leminski transou letras e músicas com os baianos, a partir do final dos anos 70 e começo dos 80. Os baianos eram desde o final dos anos 60, de longe, a vanguarda da música brasileira. Com influência em outros segmentos, em conexão com os concretistas. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethania encontraram no poeta paranaense um interlocutor, uma parada obrigatória. Outros nomes ligados ao tropicalismo, como Jards Macalé, Jorge Mautner, Tom Zé, Wally Salomão, entraram no circuito. E com isso Leminski passou a ser figura carimbada, referência obrigatória quando o assunto era poesia e música. Ele contou a um amigo como rolava o lance nesta época: “Nos 3 dias de show, Gil decicou para mim Lagunedé (soube q em Porto Alegre ele dedicava a mesma música a Caetano que estava lá) com o seguinte comercial: para Paulo Leminski, grande poeta do Paraná, poeta realce, uma das inteligências mais faiscantes deste país”. Era a glória. (EP)

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