Adeus à primeira imortal

Rio – A escritora Rachel de Queiroz, morreu ontem, vítima de infarto, aos 92 anos, em seu apartamento, no Leblon, zona sul do Rio. A irmã dela, Maria Luiza de Queiroz Salek, contou que Rachel passou a segunda-feira bem, conversando. Ela foi encontrada morta às 6h. O velório seria realizado na Academia Brasileira de Letras (ABL), casa que a recebeu no dia 4 de novembro de 1977. Foi a primeira mulher a ocupar um lugar entre os imortais.

O enterro está marcado para hoje, às 9h, no cemitério São João Baptista, no Rio de Janeiro. Maria Luiza disse, pela manhã, que o corpo não seria sepultado no mausoléu da ABL, mas sim, ao lado do marido de Rachel, o médico Oyama de Macedo, morto em 1982. A escritora completaria 93 anos no dia 17. Cearense de Fortaleza, vivia no Rio desde 1939.

Maria Luiza acredita que a morte da irmã tenha ocorrido de forma serena: “Foi melhor assim, porque ela não sofreu. Perguntei na segunda-feira como ela se sentia e Rachel respondeu que só não estava melhor porque não estava no Ceará”, contou.

A irmã lembrou que Rachel queria voltar à terra natal, à sua fazenda, perto do município de Quixadá, no sertão do Ceará, antes de morrer. A última visita foi há um ano e meio. “Nunca me divorciei do Ceará”, dizia.

A escritora sofreu uma isquemia em 2000 e há dois meses levou um tombo, mas, segundo Maria Luiza, o quadro clínico dela era bom. Até o fim de março, a escritora publicava crônicas semanalmente no jornal O Estado de S. Paulo – ela ditava os textos e Maria Luiza digitava no computador. A irmã, que mora na Barra da Tijuca, na zona oeste da cidade, ia diariamente ver Rachel.

Rachel de Queiroz estreou na literatura aos 19 anos, em 1930. Retratou no romance O Quinze a terrível seca que levou seus pais a deixarem o Ceará por um período de dois anos (1917-1919). O livro foi publicado com recursos próprios, numa edição de apenas mil exemplares. Mas suficiente para chamar a atenção da crítica e ganhar o primeiro prêmio da Fundação Graça Aranha, em 1931.

Três anos antes da publicação do livro, começou a escrever em jornais. Primeiro sob o pseudônimo Rita de Queluz, no jornal O Ceará, no qual o editor acreditou que a crônica tivesse sido escrita por um homem. Depois, colaborou com o Diário de Notícias, O Cruzeiro, O Jornal, Diário de Pernambuco e o Estado de S. Paulo. Certa vez, indagada se se considerava uma jornalista, respondeu: “É o que sou, é a minha profissão”.

Após O Quinze, teve editado os romances João Miguel (1932), Caminho das Pedras (1937), As Três Marias (1939) e O Galo de Ouro (1950), publicado em capítulos na revista O Cruzeiro. Depois disso, dedicou-se às crônicas – escreveu mais de 2 mil -, reunidas em seis livros, e ao teatro, com as peças Lampião (1953) e A Beata Maria do Egito (1958).

Somente em 1975 Rachel voltou ao romance, com Dora Doralina. Em 1992, após mais um longo intervalo, publicou o livro considerado sua obra-prima, Memorial de Maria Moura. “Eu não gosto de escrever. Escrevo porque esse é o meu ganha-pão. (…) Sou muito preguiçosa”, chegou a declarar.

Comunista

Embora tenha ajudado a fundar o Partido Comunista, acabou se desentendendo com os companheiros e deixou a sigla. Dizia que queriam interferir no conteúdo de seus livros. Desafeta de Getúlio Vargas, Rachel de Queiroz participou da conspiração intelectual para a derrubada do então presidente João Goulart. Por diversas vezes, a casa dela serviu para reuniões do grupo que ajudou na queda de Goulart, como diz no livro biográfico Tantos Anos.

Grato, o marechal Humberto Castello Branco, que veio a ocupar a Presidência, acabou se tornando um grande amigo e a visitava no Rio e no Ceará. Quando morreu, em um desastre de avião, em 18 de julho de 1967, havia acabado de sair da fazenda de Rachel em Quixadá. Rachel viajaria com ele, mas desistiu, na última hora. Rachel não tinha religião e dizia não ter medo da morte. “Não acredito em Deus nem na imortalidade da alma”. (Colaboraram Karine Rodrigues e Roberta Pennafort)

TV trouxe reconhecimento popular

São Paulo – Em 1994, Rachel de Queiroz já era uma instituição das letras nacionais quando a Rede Globo adaptou Memorial de Maria Moura no formato minissérie. A própria Rachel admitia, depois disso, que finalmente havia se transformado numa celebridade. Dona Moura, como passou a ser chamada pelos colegas acadêmicos, chegou a pensar em refugiar-se de novo no sertão, pois o apartamento no Leblon virou alvo de romarias de incontáveis fãs (e também de estudantes que a procuravam para fazer trabalhos escolares).

Embora tenha escrito vários romances a partir de O Quinze, em 1930, Rachel poucas vezes foi adaptada para o cinema. Antes de Maria Moura na TV, houve só Dôra, Doralina, que Perry Salles dirigiu em 1978, com sua então mulher, Vera Fischer, no papel-título. Vera já era um furacão de sexo e beleza, mas ainda não a unanimidade nacional em que se transformou depois. O filme sobre a destruição da comunidade do Caldeirão, no Crato, em 1936, faz dela a filha de uma autoritária dona de terras. Contra a vontade da mãe, Dora liga-se a um agrimensor e, a partir daí, cai na estrada, enfrentando todo tipo de violência, até perceber, como o pai, que um mundo mais humano é possível – herança da Rachel comunista, que, mesmo após se desligar do partido, nunca deixou de se definir como “socialista” (apesar do apoio aos regimes militares que a colocou na fileira dos direitistas).

Rachel reconhecia que Maria Moura, na TV, distanciara-se do romance, mas isso não a impedia de gostar da minissérie. Muita coisa na adaptação de Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Glênio Póvoas não tinha nada a ver com o livro. Rachel, previdente, fez encaixar nos créditos que a adaptação de seu romance era “livre”. No livro, Maria Moura não suja a mão de sangue, transfere para outros as atrocidades. O original literário é, comparativamente, mais light. A TV pôs ênfase no sexo e na violência e mudou o básico, que é a traição de Cerino. No livro, existe um homem que na TV, virou o padre. Rachel acrescentava que o leitor de qualquer romance pode construir a personagem no seu imaginário. Depois da minissérie, Maria Moura passou a ser, para todo o sempre, Glória Pires. Impossível imaginar a heroína sem o vigor que lhe imprimiu a atriz. No livro, Maria Moura não morre. Na minissérie, jogou-se para a morte contra os inimigos e a imagem foi congelada.

Maria Moura está sendo transposta para o cinema pela diretora Leilane Fernandes, na que será a segunda adaptação cinematográfica de livros de Rachel de Queiroz. O problema é que a produção ficou enrolada e teve de ser suspensa, o que não quer dizer que tenha sido arquivada. Em 1995, a morte de Augusto Ribeiro Jr. também deixou inacabada outra adaptação, justamente a de O Quinze, que o diretor queria transformar num épico de grandes proporções. Até hoje, há grupos interessados em levar O Quinze adiante, mas está sendo difícil viabilizar a produção, muito cara.  Luiz Carlos Merten

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