A sociedade enferma e seus arautos

É impressionante, ao longo dos tempos, o número de gênios que foram classificados como “loucos” pela medicina psiquiátrica de épocas e saberes diferentes. Muitos desses homens ou mulheres, por determinadas atitudes, em tudo confirmaram o diagnóstico, e nesse particular o filósofo Michel Foucault dá-nos uma explicação convincente, ao revelar que “a história da irracionalidade deve estar dentro das mesmas fronteiras que a história da razão”.

O historiador inglês Roy Porter descreveu com imensa categoria o assunto que tem atraído muitos estudiosos da evolução da doença mental. Dentre os livros que publicou, destaco Uma história social da loucura (Jorge Zahar Editor, RJ, 1991), no qual se percebe que as formulações de loucura enquanto maldade ou doença, “tinham um potencial assustador no sentido de se considerar a pessoa doente como menos humana”.

Porter assinala que a partir do século XVIII começou a se falar num ramo especializado da medicina chamado “psiquiatria”, com base na experiência dos hospícios. Os psiquiatras já sabiam, então, que esse tipo de doente era uma criatura cuja associação defeituosa de idéias e sentimentos na mente tinha levado a conclusões errôneas sobre a realidade e o comportamento adequado. Em outras palavras, “loucura era, assim, essencialmente, delírio, e o delírio provinha de um erro intelectual”.

Um nobre otimismo quanto à cura da doença mental, diz o historiador, originou-se da idéia que o isolamento de pessoas com a finalidade de livrá-las de más influências, seria de grande ajuda na reprogramação de suas mentes. “Os loucos caíam na armadilha de mundos fantasiosos, em geral desenvolvidos a partir de uma imaginação sem freios. Eles necessitavam de ser tratados essencialmente como crianças, que requeriam uma dose firme de rigorosa disciplina mental, retificação e retreinamento no pensar e no sentir. O hospício deveria, então, ser transformado numa escola reformatória”.

Essa espécie de psiquiatria esclarecida praticada nos asilos foi apropriada como um dever pela sociedade. O tratamento específico para a recuperação dos lunáticos disseminou-se em grande escala no século XIX, na Europa e Estados Unidos, cujos governos assimilaram a responsabilidade de contar com legislação pertinente a fim de propiciar assistência adequada “para os loucos, tristes e maus”. Porter informa que na Inglaterra, em torno de 1810, cinco mil pessoas haviam sido confinadas em hospícios, número que chegava a 100 mil por volta de 1900. Nos Estados Unidos, nesse tempo, meio milhão de doentes ou deficientes mentais habitava as instituições psiquiátricas. A verdade melancólica logo descoberta por psiquiatras reformistas foi que quanto mais manicômios eram construídos, “ainda assim as fontes da loucura lançavam mais maníacos, mais melancólicos suicidas, mais dementes senis, necessitados de cuidado e tratamento”.

Tomava corpo, então, uma realidade perturbadora, no dizer de Porter. Cada vez mais a experiência demonstrava que os doentes mentais, mesmo colocados no ambiente utópico dos manicômios “não se recuperavam com tanta rapidez, como havia sido previsto. Na verdade, a maioria simplesmente não conseguia cura nenhuma”. Também rapidamente mudava o conceito em voga sobre os asilos: “De instrumento de regeneração, transformam-se em depósito de lixo dos incuráveis”.

Contudo, a finalidade específica do livro de Roy Porter foi estabelecer uma interpretação do discurso dos loucos, ou seja, “ver literalmente o que eles tinham a dizer”, porque “seus testemunhos são eloqüentes a respeito de seus temores e esperanças, das injustiças que sofreram, acima de tudo do que é ser louco ou considerado louco”.

Um dos exemplos analisados pelo historiador é Robert Schumann, o genial compositor romântico alemão, que chamava a atenção pelo “espantoso dom de improvisar ao piano, especialmente sua capacidade de criar música que captasse perfeitamente o modo de ser ou o humor de uma determinada pessoa. Chamava isso de fantasia ou improviso louco”. Dado a crises repentinas de pânico e depressão, o próprio Schumann dizia: “Parece que vou ficar louco um dia”. Por vontade própria internou-se num asilo e aí retirou-se para dentro de si mesmo. Diz Porter: “O louco Schumann levou a própria vida do único modo que lhe foi possível: fez greve de fome até morrer. Morreu no dia 29 de julho de 1856. Sozinho”.

Esquizofrênico foi também o bailarino russo Nijinski, o mais importante de sua época. No final da Primeira Guerra Mundial, ele e sua mulher, Romola, refugiaram-se em St. Moritz, Suíça, onde passou a desenvolver um comportamento estranho, realizando longos passeios carregando uma grande cruz. Desenhava cenas macabras sobre a guerra, era rude e violento com a própria mulher. Um criado do hotel que conhecera o insano Nietzsche lembrou que o artista russo estava ficando do mesmo jeito. Meses depois foi levado a um asilo de loucos e lá ficou por quatro anos. Quando Romola decidiu retirá-lo estava quase mudo, tremente, macilento, abobalhado e amedrontado.

Nijinski dançou pela última vez no final da Segunda Guerra Mundial para compatriotas russos, que libertaram a Hungria, onde estava em 1945. Segundo Porter, esse foi um dos muitos “artistas e intérpretes apanhados numa mitologia coletiva, em parte criada por eles próprios – a idéia de que o gênio e a loucura eram dúplices, almas irmãs”.

Outro a sofrer galopante ação da doença mental foi Nietzsche, que ao escrever Ecce Homo proclamou: “Eu não sou um homem, eu sou dinamite”. Seriamente atacado pela demência permaneceu na clínica do dr. Binswanger, em Basiléia, até 1890, quando voltou a morar com a mãe em Jena. “Ali, o homem antes rejeitado tornou-se uma lenda viva – o profeta louco”, escreveu Porter. Seu estado vai-se agravando a ponto de reconhecer apenas a mãe e a irmã; passa os dias deitado num sofá em completa apatia “pontuada apenas por uns rugidos e berros ocasionais”. Em agosto de 1900 morre de um ataque de febre, antes de completar 56 anos.

Meio século mais tarde, a vida e a loucura de Antonin Artaud (“sofro de uma assustadora doença mental”), retomaram em muitos aspectos a tragédia do autor de Humano, demasiado humano. Para o historiador “ambos sentiram uma apaixonada repugnância pela civilização em massa de ninguéns que os ameaçavam e por quem jamais seriam compreendidos. Para Nietzsche, essa sociedade estava inchada, esclerosada, mortalmente doente. Para Artaud, que viveu num século de guerra mundial, a sociedade não era basicamente doente, mas destrutiva e, por sua vez, precisava ser destruída”. Escrevendo sobre Van Gogh afirmou que a sociedade o suicidara, organizando em asilos de lunáticos o estrangulamento de todos aqueles a quem queria eliminar.

Como os dadaístas e surrealistas com os quais se associou, a conclusão é de Roy Porter, “Artaud, seguindo Nietzsche, exclui-se da sociedade num movimento duplo de rejeitar e ser rejeitado, marginalizar e ser marginalizado. Ele seria um marginal, um rebelde”. A observação de Anaïs Nin sobre o revolucionário da poesia e teatro modernos, em 1933, é não menos dilacerante: “Ele queria uma revolução, ele queria uma catástrofe, um desastre que pusesse fim à sua vida intolerável”.

Por ironia, Van Gogh, suicidé de la societé, recebeu o Prêmio Saint-Beuve, em 1948. Artaud viveu mais alguns dias.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

Voltar ao topo